Como não se deve legislar sobre formação de professores

O legislador tinha apenas uma preocupação: poder usar como propaganda política o regresso dos estágios remunerados. E assim o tem feito, e o povo acredita e aplaude, sem conhecer sequer o modelo.

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A lição é antiga: quando um legislador erra, deve ter a sabedoria de reconhecer o erro e corrigi-lo. Aristóteles, na sua Política, reconhece a possibilidade de erros no sistema legal e político, mas argumenta que a legislação deve ser flexível o suficiente para corrigir esses erros e adaptar-se às circunstâncias específicas de uma comunidade e, se as leis resultarem em injustiça ou desigualdade, a legislação precisa de ser ajustada para restaurar a equidade. Este princípio antigo devia aplicar-se às muitas leis que se fizeram sobre formação de professores nos últimos 40 anos. Acompanho-as desde sempre, participei na de 2014, e confesso que nunca paralisei tanto como em frente ao Decreto-Lei n.º 112/2023 que o Governo socialista publicou para actualizar a formação inicial de professores em Portugal.

Houve uma comissão que fez um parecer técnico, que resultou de muitos consensos entre todos os que formam professores em Portugal, que foi ignorado largamente pelo legislador; enviaram-se centenas de sugestões construtivas, que foram igualmente ignoradas. O legislador tinha apenas uma preocupação: poder usar como propaganda política o regresso dos estágios remunerados. E assim o tem feito, e o povo acredita e aplaude, sem conhecer sequer o modelo em que tal ficou prescrito.

O legislador cometeu erros de cálculo de créditos, adoptou as mesmas regras para formações díspares, ignorou o modelo em vigor e as virtudes que tinha – enfim, fez uma má lei, quando tinha a oportunidade de contribuir para uma correcta actualização do processo de formação inicial de professores, porque apenas lhe interessava poder jogar o trunfo político que lhe permitia dizer que estava a contribuir para ter mais professores no sistema em recessão.

As condições em que tal pode ser possível foram negligenciadas. Assim, teremos um processo de prática de ensino supervisionada no ensino pré-escolar e no 1.º ciclo que é insustentável e impraticável; teremos planos de estudos impossíveis de organizar e em todo o caso ilegais à luz das leis europeias que permitirão a titulares do grau de mestre e/ou doutor poderem fazer toda a profissionalização num único ano, incluindo a obrigação previsível de fazerem mais de 100 ECTS de seminários de planos de estudo que terão de se duplicar semestralmente como se tal fosse possível, em termos de horário lectivo e com os escassos recursos humanos existentes nas instituições formadoras, ao mesmo tempo que acumulam um horário de trabalho numa escola cooperante que pode ir até 22h; temos condições de funcionamento do currículo impraticáveis para os cursos de 90 ECTS (os do 1.º ciclo); colocamos em risco de funcionamento o conceito de núcleo de estágio, por força de um modelo que levará a que cada escola cooperante não queira mais do que um professor estagiário, o que só por si vai conduzir a reduzir a um terço o contingente de professores a formar, ao revés do que se pretendia (formar mais professores); desbaratamos a cooperação com escolas cooperantes privadas que existem actualmente nas redes de formação e que têm feito um excelente trabalho nesta área; e tantos outros problemas técnicos e práticos que não cabem aqui numa breve enunciação.

Em vez de confiar na autonomia das instituições formadoras de professores para poderem decidir os seus modelos de formação, com base em regras simples e flexíveis; em vez de compreender que temos dois modelos de formação de professores (pré-escolar e básico até ao 2.º ciclo; 2.º ciclo até ao secundário) que exigem procedimentos regulamentares distintos, o Governo que apostou na flexibilidade curricular não soube praticá-la no desenho de uma lei fundamental. Mais uma oportunidade perdida, que vai introduzir no sistema de formação mais problemas do que soluções e que põe seriamente em risco o funcionamento do sistema.

O próximo governo tem de começar por corrigir esta lei com a devida urgência, para podermos ainda salvar o próximo ano lectivo e não empurrar para a vida activa jovens aprendizes de professor sem a devida preparação e empurrando também as escolas e os orientadores cooperantes para um processo de formação tão enovelado que todo o nosso tempo útil de trabalho vai ser usado para corrigir os erros legislativos e tentar encontrar soluções possíveis para situações que a lei concebeu de forma irrealizável. Não tenho ilusões nem me deixo encantar com narrativas políticas de ocasião: com esta lei, iremos formar menos professores e sem nenhuma garantia de que o estaremos a fazer melhor do que fizemos até aqui.

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