Imigração e diversidade: a cultura como lugar de encontro

Na contracorrente dos movimentos anti-imigração, a cultura possui uma dimensão de encontro onde a partilha é possível.

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Alfama é conhecida pelo fado, mas às sextas-feiras é o samba da Gira Coletivo que marca o típico bairro histórico lisboeta. Na localização geográfica, pelo menos, fado e samba se encontram. Um samba de mulheres imigrantes que abrem a roda com toda a diversidade e representatividade: sentam-se para tocar à volta de uma mesa coberta com uma bandeira LGBT, uma espada de São Jorge (planta de origem africana) e rodeadas por outras mulheres. Aliás, são as mulheres as protagonistas que seguram o samba na palma da mão, conhecem todo o repertório e cantam com tanta emoção que parecem lavar a alma.

É possível que bater na palma da mão e cantar em volta de uma roda de samba seja capaz de amenizar, pelo menos momentaneamente, a dureza dos dias de trabalho, da vida de imigrante — que é dura e cheia de percalços, muitas vezes —, do peso da burocracia e da dualidade de estar lá e cá. Às vezes, o tamborim tem um aperto de saudade. Mas, sem dúvidas, a roda de samba que acontece todas as sextas-feiras em Alfama é uma forma de reabastecer a alma, criar laços, celebrar a cultura afro-brasileira, unir as lutas e celebrar a felicidade. Afinal, nem só com amargores se desenrola a vida das pessoas imigrantes.

Tipicamente brasileiro, o samba tem raízes na cultura africana e nas rodas que os escravizados faziam para dançar e fazer capoeira. O samba de roda surgiu na Baía em meados do século XIX com a influência do lundu angolano e congolês, disseminou-se pelo Brasil e foi precursor do samba do Rio de Janeiro. Parte da população negra escravizada manteve algumas tradições dos seus países, entre elas o sambe, que na língua angolana kimbundu significa movimento corporal. Ou seja, o samba não é apenas um ritmo musical, mas a dança que dá movimento ao corpo.

Não é apenas um preciosismo destacar que o samba é ritmo e movimento do corpo. Frantz Fanon explica que o primeiro ataque do colonialismo foi ao corpo dos sujeitos colonizados: tanto na dimensão física, sendo alvo de domesticação, fruto do trabalho forçado e castigo corporal, como na dimensão simbólica, através da religiosidade e visão eurocêntrica que considerava o corpo profano. Contudo, na cultura yorùbá, o corpo é a ponte para o sagrado: é através dele que o sagrado se manifesta. É nesta conceção que o samba tem os seus alicerces e tornou-se cultura popular no Brasil, intimamente ligada às mulheres, como Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata. O samba resistiu ao colonialismo, à eugenia do Estado brasileiro, ao elitismo, à ditadura, à tentativa de criminalização e de apagamento de todo o traço cultural que não fosse branco.

É simbólico: após 201 anos de independência do Brasil, um samba de resistência acontece semanalmente em Alfama, Lisboa. A ocupação desse espaço representa não apenas a expressão da cultura afro-brasileira, mas demonstra que resistir é verbo de longo prazo e que a cultura cria laços inimagináveis. Atualmente, a população imigrante brasileira é a mais representada no país, com 400 mil regularizados. Pode-se observar presença e expressão dos brasileiros em vários espaços, como as universidades, o trabalho e os movimentos sociais, pese embora ainda haja sub-representação nos espaços de decisão e nos altos escalões. Mas hoje foquemo-nos na cultura, pois tem sido através dela, principalmente, que movimentos anti-imigração têm impulsionado o ódio e a discriminação a partir de uma ideia de guerra cultural.

A falácia da perda identitária pode ser tentadora porque, ao fazer a separação entre nós (os civilizados, salvadores) e eles (os bárbaros, violentos), cria-se uma narrativa de superioridade cultural, moral e civilizacional. Esta narrativa é sustentada com a romantização de um passado místico grandioso e líderes autoritários conseguem mobilizar de maneira muito habilidosa o sentimento de separação, de medo e de ressentimento para se legitimar e, consequentemente, aumentar as tensões sociais, a discriminação, a xenofobia e o racismo.

Ora, o racismo também opera no campo simbólico, como, mais uma vez, alertou Frantz Fanon e isto também acontece na imigração ao se depreciar as referências culturais daqueles considerados inferiores, para subalternizá-los e estabelecer um perfil de imigrante desejável: o mais branco possível, mas em pequenas quantidades; o considerado “mais próximo culturalmente” e que se assimile socialmente; e o domesticável, que não reivindique direitos e pertença ao país. Se o controle social e a desumanização também acontecem na imigração, cujos imigrantes passam por um processo de racialização, a ocupação dos espaços da cidade e o alargamento das relações interculturais podem operar como uma forma de reparação e pertença. As pessoas imigrantes querem participar, viver com dignidade e ter os seus direitos garantidos, mas também querem existir, dialogar com a comunidade de acolhimento, pertencer e expressar a sua cultura.

Nesse sentido, na contracorrente dos movimentos anti-imigração, a cultura possui uma dimensão de encontro onde a partilha é possível. Ou seja, a cultura tem uma função, entre tantas outras mais óbvias, de mediar as relações sociais, conectando, revelando e aproximando elementos diferentes, mas que podem ser comuns. Talvez por isso, muitas vezes, seja mobilizada pelo ataque e tentativa de apagamento. Se os movimentos anti-imigração fomentam a separação entre nós e eles, insuflando falsas guerras culturais; reconhecer que a cultura é viva, dinâmica e recebe várias influências ao longo do tempo é uma forma de construir elos.

A Gira Coletivo é uma representação bonita da resistência, do encontro e da partilha. O facto de o fado e o samba se encontrarem no território lisboeta demonstra a riqueza da diversidade cultural e constrói espaço para uma sociedade mais coesa, igualitária e justa a todas as pessoas que vivem no nosso Portugal. Em tempos em que o discurso de ódio tem aumentado e observamos um crescente nos ataques à imigração, urge celebrar um espaço onde as diferenças podem se encontrar e existir.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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