Diminuir o jornalismo é mais que uma crise laboral

O assunto não diz unicamente respeito aos jornalistas da Global Media. Eles e elas são apenas as vítimas mais frescas.

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J. Pulitzer considerava que a imprensa e a democracia avançam a par ou caem juntas. A generalidade dos estados democráticos contemporâneos reforçam essa ideia com a proteção constitucional ao direito à informação, conferindo ao negócio dos media um estatuto e responsabilidade especiais. Tal significa que estamos diante de uma área empresarial diferente das outras, da mesma maneira que os jornalistas, à luz do respetivo enquadramento normativo, inserem-se também num quadro profissional com especiais exigências, fazendo deles trabalhadores assalariados igualmente distintos.

Daí que discutir as relações próximas ou internas entre jornalismo e democracia, que para o professor da Universidade de Columbia, James Carey, são duas palavras que querem dizer a mesma coisa, representa um exercício que não deve esgotar-se na mera satisfação de um dos lados. Se a existência de democracia, por si só, não produz nem providencia automaticamente a presença de bom jornalismo, este, para melhor servir as necessidades da vida em democracia e responder mais completamente às ideias de pluralismo e diversidade, não pode deixar de ter em conta que tais noções implicam a deslocalização e descentralização dos chamados lugares simbólicos do poder e de onde se fala. Se a este aspeto juntarmos a circunstância de o espaço mediático dar voz, predominantemente, às mesmas visões de mundo e opiniões, significa que daí resultará inevitavelmente um sentido democrático da vida, e de toda a complexidade que a enforma, potencialmente mais pobre.

Há mais de duas décadas que esse processo de empobrecimento informativo vem sendo praticado, com picos de despedimentos coletivos regulares, seguidos do aumento do trabalho eventual e precário. Invariavelmente mal pago e com atraso. As situações de crise, que na história das organizações são vistas como fenómenos ocasionais, representam, no caso português, a regra na vida de várias empresas do setor dos media.

Daí que a atual crise (mais uma) do grupo Global Media — de que fazem parte órgãos simbólicos e fundamentais da história portuguesa dos media, como DN, JN, TSF e Açoriano Oriental, entre outros — que pretende levar avante um despedimento coletivo de cerca de duas centenas de profissionais, a maioria jornalistas, vem reforçar a urgência de se fazer um amplo debate sobre a relevância do jornalismo e o seu financiamento. Do qual é imperioso que os jornalistas participem ativamente, por três razões essenciais: 1) são eles, voltando a Pulitzer, que com o seu trabalho revigoram a vida democrática; 2) porque em regra são as principais vítimas das gestões danosas e incompetentes, algumas delas escudando-se na explicação simplista de que tudo se deve a uma crise do modelo de negócio do setor; 3) e porque têm de olhar para este debate como uma oportunidade de revalorização do jornalismo, porque é no sentido mais nobre da sua permanente dignificação profissional que o jornalista se prestigia a si e ao seu trabalho, vincando com isso a relevância social do papel que desempenha e o respetivo contributo para o tal fortalecimento da democracia.

Para boa parte dos donos dos media, esses princípios são mera prosa. A história do grupo GM mostra que a questão resume-se a um assunto contabilístico ou a uma estratégia para conquista de influência — embora sempre à sombra do jornalismo, mesmo que este pouco ou nada diga aos seus proprietários. É, de facto, incompreensível a ligeireza com que eles abatem jornalistas aos ativos das redações, quando são estas que garantem o “core business” (os gestores adoram o inglês técnico) da empresa — seria impensável, como medida de gestão empresarial comparativa, ver um restaurante desfazer-se dos seus cozinheiros, por achar que contabilisticamente ficaria mais barato ir comprar comida processada a um supermercado para a vender aquecida no microondas...

Não sendo um problema inteiramente novo, afigura-se aconselhável que a presente crise do grupo controlado por um fundo de investimento com sede nas Bahamas — situação que pela sua opacidade constitui um incrível paradoxo numa área empresarial e profissional que deve ter na transparência uma garantia imprescindível da sua confiabilidade — constitua o grito de alerta definitivo.

É sabido que lidamos com uma matéria de interesse público que deve motivar, em primeiríssima instância, os seus profissionais para a ação, apesar de não ser, convém sublinhar, um assunto de ordem corporativa. Se assim fosse, como interpretar e aceitar que o direito à informação tenha proteção constitucional? Porém, se estamos a falar de um direito fundamental em riscos de falência, é bom não adiar mais a análise aprofundada do fenómeno, a sua discussão pública e sequente tomada de medidas.

Victor Pickard (2020), em Democracy witouth journalism? Confronting the misinformation society, como antes McChesney (2000) em Rich media poor democracy e Nichols & McChesney (2013) em Dollarocracy, para apenas referir exemplos centrados na realidade norte-americana, há muito que discutem a necessidade de se inserir nas agendas públicas a questão do financiamento do jornalismo. Por cá, o debate não chegou sequer ao adro da igreja e para alguns partidos o silêncio inexplicável que têm mantido diante do que se passa com os vários órgãos da GM, diz bem acerca do seu entendimento sobre o papel do jornalismo livre e a importância que (não) atribuem à existência de uma opinião pública plural e bem informada.

Voltando ao argumento inicial: se o estado democrático confere à informação honras de um direito constitucionalmente protegido por a considerar um bem estratégico e de primeira necessidade, então ela, informação, possui o dever ético de atuar socialmente na defesa dessa democracia.

Estranha-se, assim, que o presente caso relacionado com o grupo GM tenha inicialmente sido noticiosamente tratado como uma mera crise laboral, quando o que está em causa é muito mais profundo. Deseja-se, por isso, que, no próximo congresso dos jornalistas, onde o financiamento do jornalismo vai estar em debate, ele mereça a mobilização dos seus profissionais, na certeza de que o assunto não diz unicamente respeito aos jornalistas da GM. Eles e elas são apenas as vítimas mais frescas.

Se tal não suceder, isto é, se o assunto permanecer à margem dos interesses e atenção da classe, então será caso para pensar que a crise é ainda mais grave e profunda do que parece, com impacto e danos inevitáveis e irreparáveis na nossa vida em democracia — ironicamente no ano em que celebramos os 50 anos de liberdade e o fim da censura.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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