A razão pela qual cada país quer ser o último a extrair combustíveis fósseis

Finalmente, da Cimeira do Clima saiu um apelo para se abandonar os combustíveis fósseis. Mas nem países exportadores, nem empresas têm planos para o fazer, e todos querem manter a produção até ao fim.

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As projecções da produção de combustíveis fósseis estão muito acima do necessário para impedir que se ultrapasse o patamar de 1,5 ou dois graus Celsius de aquecimento global Wolfgang Rattay/Reuters

No mês passado, os líderes mundiais celebraram um facto inédito no domínio do clima: um apelo de quase 200 países para a “transição para o abandono” dos combustíveis fósseis. Muitos anunciaram o acordo como uma nova fase nas conversações sobre o clima e como sendo o início do fim dos combustíveis fósseis.

Mas, por trás do acordo da ONU, esconde-se uma verdade mais sombria: nenhuma empresa de combustíveis fósseis ou nenhum país produtor de combustíveis fósseis tem um plano real para eliminar gradualmente os combustíveis fósseis. Pelo contrário, quase todos esperam continuar a extrair carvão, petróleo e gás até um futuro mais distante – muito além do que é necessário para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, de acordo com os objectivos climáticos de manter o aquecimento global a 1,5 graus Celsius, ou mesmo a dois graus (em relação aos níveis pré-industriais).

E parte da razão é que quase todos os países e empresas se vêem numa posição única: como sendo o último produtor de combustíveis fósseis. Ou seja, aquele que, no futuro, vai estar a produzir quando todos os outros já deixaram de o fazer.

“Cada país tem a sua própria razão que explica a razão pela qual deveria ser o último”, disse Michael Lazarus, cientista sénior do Instituto do Ambiente de Estocolmo e um dos autores de um relatório das Nações Unidas (Production Gap Report), publicado em Novembro, que analisou os planos dos países para a expansão dos combustíveis fósseis.

Nos últimos anos, a distância entre os planos dos países para os combustíveis fósseis e a trajectória descendente necessária para atingir os objectivos climáticos tornou-se um abismo gigante. De acordo com o relatório, um projecto do Programa das Nações Unidas para o Ambiente e de outros grupos de investigação, as projecções e os planos dos países para a produção de combustíveis fósseis em 2030 são mais do dobro da quantidade necessária para um limite de aquecimento de 1,5 graus Celsius.

O relatório analisou as estimativas de produção de combustíveis fósseis dos governos de 20 grandes países produtores de combustíveis fósseis, incluindo os Estados Unidos, a Rússia, o México e os Emirados Árabes Unidos. Em 2050, prevê-se que o fosso seja ainda maior – de acordo com o estudo, os países esperam produzir 2,5 vezes mais combustíveis fósseis em 2050 do que seria possível com um objectivo de dois graus Celsius.

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Nesse limiar, os cientistas prevêem uma maior subida do nível do mar, um aumento do calor extremo e uma maior possibilidade de ultrapassar pontos de ruptura catastróficos do que em relação ao limiar de 1,5 graus.

“É uma completa desconexão entre o que os governos estão a planear e o que é necessário para cumprir os objectivos de Paris”, disse Greg Muttitt, do Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável, que tem sede no Canadá.

Parte da razão para essa desconexão é o facto de muitos países acharem que devem continuar a produzir combustíveis fósseis enquanto os outros param, adiantou Lazarus. Por exemplo, a Noruega – que produz quase toda a sua electricidade a partir de fontes renováveis e tem uma das percentagens mais elevadas de veículos eléctricos do mundo –, apregoa a baixa intensidade de carbono do seu petróleo e gás e argumenta que as suas exportações são essenciais para a segurança energética da Europa.

A Arábia Saudita e outros estados do Golfo Pérsico argumentam que podem produzir petróleo e gás a um custo mais baixo do que os seus concorrentes; os Estados Unidos planeiam que as suas emissões sejam “abatidas” através da captura e armazenamento de carbono para que não poluam a atmosfera.

O resultado é a pressa das nações para ganharem uma vantagem e a quota de mercado antes que o mundo se volte mais solidamente para as energias renováveis. “Há uma corrida para produzir enquanto a licença social permanece, de algum modo, intacta”, disse Lazarus.

As empresas de petróleo e gás estão a fazer o mesmo. Embora algumas estejam a falar da boca para fora acerca da ideia de mudar para as energias renováveis (principalmente as grandes empresas europeias) ou de apostar na captura e armazenamento de carbono (principalmente as grandes empresas norte-americanas), os seus investimentos naquelas áreas são minúsculos.

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De acordo com uma análise da Agência Internacional de Energia, actualmente, menos de 3% dos fundos de capital das empresas de combustíveis fósseis – o montante que gastam em coisas físicas – são usados para financiar energia limpa. Até 2030, segundo as projecções da agência, 50% desses fundos deveriam ser investidos em energia limpa se o mundo quiser atingir os seus objectivos climáticos.

Contradições climáticas

A captura e o armazenamento de carbono enfrentam ventos contrários semelhantes. Todos os anos, o mundo captura apenas 45 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) produzido pelos combustíveis fósseis – uma vírgula em comparação com os mais de 36 mil milhões de toneladas de CO2 libertados para a atmosfera.

Mas, tal como os líderes mundiais, muitas empresas de petróleo e gás parecem estar a fazer apostas de que vão sobreviver mais do que os seus pares. Algumas empresas petrolíferas parecem estar a planear ser uma das últimas produtoras em funções”, escreveu recentemente Jason Bordoff, director do Centro de Política Energética Global da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.

As alterações climáticas sempre estiveram repletas de contradições – por exemplo, os países que utilizam a menor quantidade de combustíveis fósseis são os que sofrem os piores impactos. Mas, nos últimos anos, a contradição dos combustíveis fósseis tornou-se a maior de todas. Estima-se que mais de 2000 "lobbyistas" dos combustíveis fósseis tenham participado na mais recente cimeira sobre o clima, realizada no Dubai. Em 2023, os Estados Unidos previram extrair mais petróleo e gás do que nunca e estão actualmente a produzir mais petróleo do que qualquer outro país na história.

“Não podemos resolver a crise climática sem resolver a sua maior causa, que são os combustíveis fósseis”, afirmou Kelly Trout, co-directora de investigação da Oil Change International, uma organização que tem sede em Washington e que se dedica a expor os verdadeiros custos dos combustíveis fósseis e a lutar pela transição energética. Mas muitos países parecem acreditar que é exactamente isso que podem fazer.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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