Na Rússia, há pais a pagarem para levarem os filhos a “terapias” de conversão

Depoimentos dos centros de conversão envolvem espancamento, tortura e até a castração de um porco para “mostrar como é uma cirurgia” de redesignação sexual.

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Reuters
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Na Rússia, onde a comunidade LGBTQ+ foi banida por ser “extremista”, alguns pais estão a pagar a pessoas para abduzirem os filhos queer e levarem-nos para centros de segurança privada onde fazem “curas” e “terapia de conversão”.

Alguns destes jovens estão a abandonar o país, à procura de segurança no Ocidente.

Antigos residentes destes centros relatam que as condições por trás das altas paredes de cimento são como pequenas prisões pensadas para pessoas com dependência de álcool, drogas ou cujas famílias vêem como problemas.

Muitos deles foram enganados ou isolados e mantidos nestes centros durante meses. Contam ter sido espancados, humilhados ou forçados a ler “confissões” em que se diziam destrutivos e egoístas devido às suas identidades ou orientações sexuais — à semelhança de programas rígidos para combate às drogas ou álcool.

Muitos deles saíram “mentalmente destruídos”, com a crença de que tinham algo de errado, refere Vladimir Komov, que era advogado num proeminente grupo de direitos LGBTQ+, o Delo LGBT+, e cessou os trabalhos na semana passada devido à proibição dos movimentos LGBT.

Um relatório de 2020, realizado por um especialista independente das Nações Unidas, relatou que as práticas de conversão são “extremamente nocivas e infligiam dor severa e sofrimento, resultando em consequências duradouras a nível psicológico e físico”. O relatório pediu uma proibição global destas práticas.

Numa tentativa de cimentar a lei e construir uma nação repressiva e altamente conservadora, Vladimir Putin transformou as pessoas LGBT e activistas contra a guerra em bodes expiatórios.

Mas esta retórica faz também parte da tentativa de Putin envolver países conservadores de África e do Médio Oriente na guerra contra a Ucrânia. Ao mesmo tempo, procura dividir as democracias ocidentais, ao encorajar o desprezo pelos direitos das pessoas LGBTQ+.

Numa lei de 30 de Novembro, o Supremo Tribunal russo deu o aval ao pedido do Ministério da Justiça para banir “o movimento internacional LGBT” e classificá-lo como uma organização extremista, entre outras leis repressivas. Depois da lei, a polícia invadiu espaços LGBTQ+ em Moscovo.

Um site de streaming, que está a ser alvo de investigação, classificou o filme My Little Pony: Friendship Is Magic, uma série de animação para crianças, como “filme para adultos”, provavelmente devido ao facto de a crina e a cauda de um dos póneis ser das mesmas cores da bandeira do orgulho gay (arco-íris).

Antes de fechar, o Delo LGBT+ recebia 200 pedidos de ajuda legal de pessoas queer por mês. Desses, 7% diziam que as famílias ameaçavam colocá-los em centros de tratamento, ou que já o tinham feito no passado, relatou o grupo. “Depois desta lei, o número de pessoas que enfrenta estas ameaças subiu”, lamenta Komov.

“Podem chamar-me de prisioneira”

Ada Blakewell, 23 anos, pessoa trans e não binária, activista e jornalista, que usa os pronomes “ela/elu”, passou por nove meses de “tratamento” de conversão. Entre Agosto de 2022 e Maio de 2023, esteve num centro remoto, o Freedom Rehabilitation Center, na Sibéria.

Blakewell diz ter sido espancada, lançada ao rio como castigo, e obrigada a fazer exercício físico até “ver tudo branco”. “E depois obrigavam-me a fazer outra e outra vez.”

Era forçada a nadar no rio todos os dias, pelas 8h da manhã, antes das rezas matinais, mesmo no Inverno, com temperaturas negativas. Davam-lhe “tarefas de homem”, como cortar lenha e matar galinhas, perus e porcos, para a “ajudarem a tornar-se um homem”.

Uma vez, foi forçada a castrar um porco, para, disseram-lhe, ver como era uma cirurgia de redesignação sexual. “Deram-me um bisturi e instruções para o fazer, mas não consegui acabar. Tive um grave ataque de pânico e, a partir daí, fiquei cada vez com mais pensamos suicidas.”

Deram-lhe medicamentos neurolépticos, destinados a pessoas que sofrem de doença mental. “Podem chamar-me prisioneira”, diz.

Alexandra, 28 anos, uma mulher trans de Moscovo cujos pais rejeitaram a sua identidade de género, foi forçada a viver em vários destes centros durante 21 meses.

Alexandra, que concordou relatar a sua experiência revelando apenas o primeiro nome, passou 20 meses num centro fora de Moscovo, com 60 pessoas, principalmente com dependência de álcool e drogas, e eram controlados por antigos residentes, que decidiam os castigos. Disseram-lhe que ser queer era um vício que iria estragar a sua vida.

Alexandra conta que estava tão sedada que se sentia “um zombie” e que lhe diziam constantemente que estava doente. Outros residentes ameaçam matá-la. “Sentia-me sozinha, porque as pessoas que viviam comigo eram de outro mundo. Eram muito distantes.”

“Parar de ser queer”

Os depoimentos de Blakewell e Alexandra não puderam ser verificados independentemente, mas são consistentes com relatos anteriores de media russos independentes e com os de grupos internacionais de direitos humanos que relatam a realidade dos centros de conversão na Rússia.

Blakewell afirma que foi enganada pela sua mãe para ir para o centro, que lhe disse que precisava que a acompanhasse a uma cirurgia ao coração numa zona rural de Altai. A mãe saiu do carro e um homem encostou Blakewell à porta, trancou o carro e tirou-lhe o telemóvel, o relógio e a mochila.

Enquanto conduziam em direcção ao centro, o condutor disse que era altura de parar de ser queer. “Ainda tenho muita amargura em relação à minha família”, diz.

Alexandra sente-se de forma semelhante. “Não sabia o que pensar. Estava num lugar muito vulnerável naquela altura.”

As práticas de conversão foram banidas em 22 estados dos EUA e em 12 países (Portugal aprovou a criminalização destas práticas há uma semana), com muitos outros a planearem fazer o mesmo, de acordo com o Global Equality Caucus, uma rede mundial de legisladores que luta pelos direitos LGBTQ+.

No mês passado, Konstantin Boikov, advogado do Dela LGBT+, fugiu da Rússia para Nova Iorque, depois de ameaças e assédio homofóbico (Boikov não se identifica como homem gay). Atiraram tomates e ovos à porta do seu apartamento, deixaram bilhetes abusivos e cabeças de galinhas.

Boikov disse sentir-se aprisionado pelas autoridades russas e pela violência homofóbica. “Não podemos continuar a nossa actividade como uma organização”, referiu o advogado, agora um dos cinco deste grupo que vive nos EUA, e que acompanha Blakewell e Alexandra nos seus procedimentos legais. “Por isso, os nossos membros vão actuar de forma individual, ajudando os outros enquanto advogados ou activistas pelos direitos humanos.” Nenhum cliente vai ser abandonado, garantiu.

“O Estado está a tentar convencer a população de que todos os males do país vêm destes inimigos, para que as pessoas se unam à volta de um líder sem pensar.”

Alexandra conseguiu fugir em Junho, depois de partir umas escadas e ter ameaçado os funcionários que iria continuar a destruir coisas, se não a deixassem sair. Os seus pais ainda a rejeitam.

Blakewell fugiu um mês depois de ter sido levada, mas foi apanhada rapidamente, e espancada de forma tão brutal que alguns dos seus dentes se partiram. Tentou por mais duas vezes, e foi espancada de novo. Conseguiu libertar-se depois de ligar para a polícia do telemóvel de um dos funcionários que encontrou perdido. Insistiu até que a viessem salvar.

Antes de ser presa, Alexandra era uma mulher trans orgulhosa. Depois de se libertar, afirma ter-se tentado libertar também da “terapia de conversão”, mas lamenta ter falhado. “Hoje em dia sinto que a minha identidade trans tem algumas fragilidades. É doloroso.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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