Na Rússia, a vida de um gay conta menos

Há mais de 20 anos que a homossexualidade deixou de ser crime na Rússia e já nem sequer é vista como doença, mas as minorias sexuais vivem uma época de perseguição violenta.

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Activista pelos direitos homossexuais é agarrado por antigos pára-quedistas russos durante manifestação em São Petersburgo Alexander Demianchuk / Reuters

Jenya, nome fictício de um jovem russo de 28 anos, preparava-se para encontrar alguém que conhecera online há alguns dias, quando foi subitamente rodeado por um grupo de homens que o começaram a agredir. “Senti dor e sangue na minha boca, mas só depois é que me apercebi que os atacantes me tinham partido o maxilar em dois sítios”, contou. Tudo tinha sido uma armadilha para apanhar o jovem homossexual num país onde é cada vez mais difícil sê-lo.

No Verão de 2013, o Parlamento russo aprovou uma polémica lei com o objectivo de proibir “a propaganda de relações sexuais não tradicionais junto de menores de idade”, numa referência às relações não heterossexuais. Desde então, apenas quatro pessoas foram acusadas de violar o diploma, mas a sua aprovação tem contribuído para uma crescente perseguição às minorias sexuais na Rússia, diz a organização não governamental Human Rights Watch (HRW) num relatório publicado esta segunda-feira.

“A lei da ‘propaganda’ anti-LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros] não protege ninguém, mas dá aos homofóbicos uma razão conveniente para acreditarem que as vidas dos LGBT contam menos para o Governo”, afirmou a investigadora da organização de defesa dos direitos humanos Tanya Cooper.

Os autores do relatório Licença para Ofender: Violência e Perseguição contra Pessoas LGBT e Activistas na Rússia conduziram mais de 90 entrevistas a membros da comunidade LGBT de várias cidades russas e concluíram que “tem havido um aumento dos ataques por grupos de vigilantes e indivíduos contra pessoas LGBT nos últimos dois anos”. “Os grupos anti-homossexuais usaram a lei de 2013 para justificar campanhas mais alargadas de perseguição e intimidação”, diz ainda o relatório.

Das pessoas entrevistadas para o trabalho, 26, entre as quais um menor, afirmaram terem sido espancadas por indivíduos isolados ou por grupos homofóbicos – um fenómeno que tem ganho força, diz a HRW. Trata-se de organizações informais consideradas violentas com forte presença online compostas sobretudo por “nacionalistas radicais” que “atraem homossexuais e jovens rapazes com o pretexto de um encontro falso, detêm-nos contra a sua vontade e humilham-nos e expõem-nos, gravando os encontros”.

Para além das agressões como a de Jenya, os membros destes gangs obrigam as vítimas a despirem-se e a posar para fotografias com vibradores, pintam o seu corpo e cobrem os seus genitais com espuma de construção. Há também relatos de tentativas de violação.

A acção destes grupos contribui para um clima de insegurança generalizada entre a comunidade LGBT russa. Em Setembro, uma famosa professora de tango, cuja homossexualidade era reconhecida, apareceu degolada no seu carro, naquele que é um crime que as associações de defesa dos direitos homossexuais estão convictas de ter sido motivado pela sua orientação sexual.

Clima de impunidade
A crescente violência não tem encontrado, contudo, uma especial preocupação por parte das forças de segurança, que a HRW acusa de promover “uma impunidade generalizada ante os crimes homofóbicos”. Dos 78 casos de perseguição ou agressões relatados pela organização, 22 vítimas não apresentaram queixas junto das autoridades por “recearem intimidação directa pela polícia e por não acreditarem que os casos fossem tratados seriamente”.

Apenas três das 44 queixas apresentadas deram origem a uma acusação. “A violência sobre as pessoas LGBT na Rússia é inequivocamente motivada pela homofobia, mas as autoridades ignoram deliberadamente que estes são crimes de ódio e falham na protecção das vítimas”, diz Tanya Cooper.

Com a Rússia a tornar-se cada vez mais num país adverso para as minorias sexuais, uma das opções encontradas tem sido a fuga. A organização norte-americana Immigration Equality, que dá apoio a imigrantes LGBT, revelou que o número de cidadãos russos homossexuais que pedem asilo nos EUA tem subido nos últimos anos. Em 2012 foram 68, em 2013 subiu para 127 e até ao final de Outubro já tinham chegado 161 pedidos, de acordo com os números revelados ao jornal The Guardian.

A posição do Kremlin quanto a esta situação é a de que a homossexualidade não é um crime na Rússia e a lei da propaganda serve apenas para “proteger” as crianças. Confrontado com a lei, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, defendeu na altura que os homossexuais não podem “promover agressivamente os seus valores, que são diferentes dos da maioria, e impô-los às crianças”.

Durante os regimes czarista e comunista, a homossexualidade era ilegal e quem fosse acusado poderia mesmo ser preso ou enviado para campos de trabalho ou hospícios. Só após o colapso da União Soviética as relações homossexuais foram descriminalizadas. Em 1999 a homossexualidade deixou de ser considerada uma doença, ao abrigo da revisão da Classificação Internacional de Doenças feita em 1990.

Porém, a sociedade russa, cada vez mais ancorada na doutrina conservadora defendida pela Igreja Ortodoxa e acolhida pelo Kremlin, não acompanhou a evolução legal. Segundo uma sondagem do ano passado, realizada pelo Instituto Pew, 74% dos russos não aceitam a homossexualidade na sociedade e apenas 16% têm uma visão favorável. Num estudo comparativo da ILGA, a Rússia aparece no último lugar entre 49 países europeus, tornando-o no país onde as condições para os homossexuais são as piores.

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