Esqueçam o que diz o Borda d’Água: falta de água complica as previsões

O Sul do país termina 2023 com um volume de água inferior ao que apresentava no início do ano e a guerra de água com Espanha pode vir a ter lugar já no pincípio de 2024.

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Alterações climática obrigam à adpatação de novos modelos de gestão da água IvanRu/GettyImages
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O boletim que o Serviço Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) publica semanalmente sobre os volumes de armazenamento das albufeiras públicas nacionais deixa implícito um pormenor curioso que Carlos Alberto Cupeto, professor no Departamento de Geociências da Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade de Évora, referiu ao PÚBLICO: “Já não é tempo para seguir as orientações do Borda d’Água.

Com efeito, o almanaque português que é publicado desde 1929, e que continua a ser olhado como “uma instituição portuguesa”, como já referiu Miguel Esteves Cardoso, fornecendo a quem trabalha no campo previsões meteorológicas para poderem executar com alguma segurança os trabalhos agrícolas a programar ao longo do ano, passou a estar confrontado com um universo cada vez mais acentuado de incertezas.

A tradição que o Borda d’Água persiste em prosseguir faz parte da história. “Hoje temos de fazer caminho no sentido das culturas adaptadas às alterações climáticas que estão a ocorrer e na adaptação a novos modelos de gestão e uso da água”, defende o investigador da Universidade de Évora, destacando, a propósito, o seu próprio testemunho: Carlos Cupeto tem uma pequena vinha e pretendia sachá-la. Há 15 dias, a terra estava encharcada, agora custa a cavá-la porque está seca. “Isto não acontecia há décadas”, salienta.

O fenómeno ocorrido em Outubro e que varreu a Península Ibérica sob a forma dos temporais Aline, Bernard e Celine, com chuva abundante e generalizada a norte do Tejo e moderada no Sul do país ou mesmo inexistente nalguns concelhos alentejanos e algarvios, está a mudar o figurino no mundo agrícola e na insegurança crescente no acesso à água para consumo humano.

Picos de precipitação causam ainda mais prejuízo

O contraste revela-se na incredulidade: o rio atmosférico [um transporte de humidade numa faixa relativamente estreita] que percorreu Portugal deixou 34 das 48 barragens públicas existentes a norte do Tejo com uma reserva de água acima dos 80%. A sul deste rio apenas uma dezena está, neste momento, praticamente cheia. Mesmo assim, a maioria encontra-se na bacia do Tejo.

O contraste entre o Norte e o Sul observa-se ainda nas albufeiras com menos caudal, mais evidente no Alentejo e Algarve, com 19 barragens a apresentar um volume de armazenamento abaixo dos 50% e destas, cinco estão “no vermelho” – Campilhas (7%), Monte da Rocha (8%), Vigia (17%), Arade (18%) e Bravura (8%). Acima da linha definida pelo rio Tejo, apenas quatro albufeiras têm o seu volume de armazenamento abaixo dos 50% e, destas, duas estão no vermelho — Lagoacho (18%) e Vale do Rossim (14%) em pleno Inverno.

Os picos de precipitação desencadeados pelas tempestades ocorridas em Outubro, para além terem tido um impacte mínimo no Sul do país por serem mais concentrados as suas consequências nefastas, “acabam por se reflectir na erosão do solo, causando prejuízos brutais”, sublinha Carlos Cupeto, salientando um pormenor insólito: Évora tem praticamente o mesmo volume de precipitação atmosférica que ocorre em Londres. No entanto, na cidade inglesa a chuva distribui-se ao longo do ano, ao contrário do que acontece na capital do Alentejo Central, “onde chove o mesmo volume de água em dois ou três dias”.

Acresce ainda um outro fenómeno: “Com estes picos de precipitação, a retenção de água no solo é mínima. Fica encharcado à superfície e passamos a assistir a um arrastamento da água e a uma infiltração residual”. Assim, também a recarga dos aquíferos subterrâneos peca por ser escassa, observa o docente da Universidade de Évora.

“As chuvas intensas favorecem principalmente as regiões a norte do Tejo, onde a precipitação é historicamente mais destacada”, confirma o SNIRH.

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Há duas realidades distintas nas reservas de água a Norte e a Sul do Tejo GettyImages

Menos água do que a 2 de Janeiro de 2023

A capacidade de armazenamento global nas 82 barragens públicas nacionais é de 13.257 hm³. Deste volume hídrico — considerando o que se passava no dia 27 de Dezembro —, 5811 hm³ estão concentrados a norte do Tejo e 3792 hm³ na Região Sul, ou seja, um total de 9603 hm³ (74%), uma reserva hídrica inferior à registada a 2 de Janeiro de 2023. Neste dia, as albufeiras públicas nacionais concentravam 10.430 hm³ (85%) — 5840 hm³ a norte do Tejo e 4598 hm³ a sul. A diferença entre Janeiro e Dezembro de 2023 representa uma quebra de 806 hm³ nos volumes de água armazenados nas 82 albufeiras.

O balanço hídrico do ano que está a terminar permite concluir que apesar dos temporais ocorridos em Portugal, sobretudo em Outubro, 12 das 14 bacias hidrográficas monitorizadas pelo SNIRH apresentaram menor volume de água em Dezembro comparativamente com Janeiro. Só as albufeiras da bacia do Cávado e a albufeira de Morgavel, na costa alentejana, apresentam um acréscimo em relação a Janeiro passado.

O ano de 2023 despede-se na expectativa de que o novo ano traga a água que falta sobretudo no Sul de Portugal. Alqueva já não é a mãe de água que fez parte do sonho de muitas gerações. As exigências de água aumentam cada dia que passa no Alentejo, Algarve e na vizinha Espanha, sobretudo nas regiões da Extremadura e Andaluzia.

O presidente da EDIA, José Pedro Salema, adiantou ao PÚBLICO que a área regada com água de Alqueva já terá chegado aos 160 mil hectares: 132 mil hectares nas áreas regadas sob gestão da EDIA e cerca de 30 milhões nos blocos de rega das barragens da Vigia, Roxo, Odivelas e Campilhas e Alto Sado.

O volume de água consumido atingiu os 580 milhões de metros cúbicos: cerca de 400 milhões no regadio de Alqueva, 20 milhões em captações directas, confinantes e o restante no consumo humano e industrial.

Em cima dos consumos ilegais, com cortes nos abusos

“O sistema continua a ser bem utilizado e funcionou com eficácia num ano extremamente quente e seco, que exigiu maiores consumos de água”, explicou Pedro Salema, com uma observação: “E não foi mais porque reforçámos o controlo e a fiscalização dos consumos ilegais. Pela primeira vez estabelecemos critérios muito rigorosos no consumo de água.”

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Os volumes autorizados foram previamente estabelecidos com base na dotação calculada para as culturas permanentes (olival, amendoal, vinha, frutícolas) e com base no número de hectares a regar. “Aos que ultrapassaram os valores acordados, a água foi cortada”, sublinhou o presidente da EDIA, salientando que a maioria dos agricultores fez o uso da água “conforme as orientações estabelecidas”.

Com a reserva de água de Alqueva próxima do limite máximo estabelecido para o regadio — 590 hm³ —, a gestão em 2024 será muito problemática se as condições climáticas continuarem a primar pela escassez de chuva, quando da vizinha Espanha, sobretudo de Huelva, as pressões para o fornecimento ao sector agrícola, actividade mineira e turismo aumentaram neste final de ano.

“Fornecer água de Alqueva para Espanha só por decisão política”

O Ministério da Agricultura, Pescas, Águas e Desenvolvimento Rural da Junta de Andaluzia e a Plataforma Água para o Campo, Alimentos para o Mundo acordaram na última quinta-feira pedir ao Governo central espanhol que solicite junto do Governo português “a transferência urgente e extraordinária dos direitos de água da albufeira portuguesa de Alqueva”. E vão instar o Ministério da Transição Ecológica para que seja realizada uma “revisão da Convenção de Albufeira” e para que seja viabilizada a “transferência extraordinária de direitos de água” que consideram “viável”.

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Alqueva guarda em Portugal água desejada por Espanha GettyImages

A posição agora expressa pelas autoridades andaluzas vêm reforçar a que foi assumida, no passado mês de Outubro, por várias organizações agrícolas da província de Huelva, Associação de Citricultores da Província de Huelva, Cooperativas Agro Alimentarias de Huelva, Asaja, UPA, Interfresa e Freshuelva, através de comunicado a que o PÚBLICO teve acesso.

Estas organizações concordaram interceder junto do governo autónomo da Andaluzia e Governo central espanhol para que cheguem a um acordo com Portugal de forma a “tornar eficaz a Convenção de Albufeira, que contempla a possibilidade de fornecer água da albufeira de Alqueva em situações de seca extrema como a actual”, salientam.

Ao longo do ano de 2023, dada a seca prolongada e a ausência de chuva, a EDIA teve de proceder a um reforço no abastecimento de água para o regadio na área sob influência de Alqueva. O esforço obrigou a consumir praticamente a água disponível para rega. Neste momento, a albufeira da grande barragem tem uma reserva de 2988 hm³, menos 590 do que em relação a Janeiro.

“Fornecer água de Alqueva para Espanha só por decisão política”, refere Pedro Salema, assumindo a sua preocupação pelo número de pedidos que não param a reclamar o acesso a algo que definiu deste modo: “É um recurso finito e que sempre procurámos gerir com muito rigor.”

Tudo indica que o conflito da água com Espanha veio para ficar. A Convenção de Albufeira, um tratado internacional que regula a transferência de água entre Espanha e Portugal através dos rios internacionais que partilham, obriga o país vizinho a enviar anualmente 3700 hm³ no rio Minho, 7300 hm³ no rio Douro, 2700 hm³ no rio Tejo e 600 hm³ no rio Guadiana. No total, o país vizinho está obrigado a transferir, em anos normais, 14.300 hm³.

A dependência de Portugal em relação à Espanha resulta do facto de 40% da água de que dispomos ser proveniente deste país. Ou, como se tornou recorrente afirmar, a torneira de boa parte da água que entra em Portugal está em Espanha.

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