Com os sedimentos, a barragem de Santa Clara não terá sequer a pouca água registada nos dados oficiais

Em 2008, o Instituto Nacional da Água estimou que estariam depositados no leito da albufeira cerca de 200 hectómetros cúbicos de sedimentos. Desconhece-se qual será o volume actual.

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Seca: agricultores com restrições no acesso a água da barragem de Santa Clara Tiago Bernardo Lopes
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O Inverno chegou às 3h27 da passada sexta-feira, mas a reserva hídrica na albufeira de Santa Clara continua a baixar sem que se vislumbre, nas próximas semanas, índices de precipitação que possam acalentar a esperança de um reforço no volume de água armazenado.

Com a incerteza de uma previsão a médio prazo, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera prevê, até 8 de Janeiro, “precipitação total semanal com valores abaixo do normal”. Na semana seguinte, os valores da precipitação estarão “acima do normal para quase todo o território, com excepção do Algarve” e também da região onde se localiza a bacia hidrográfica que debita caudais para a barragem de Santa Clara.

Haverá água suficiente?

A grande incógnita que condiciona as expectativas para o novo ano agrícola está em saber se haverá água em quantidade suficiente para garantir a rega das culturas intensivas, das práticas agrícolas tradicionais e da actividade pecuária (13,5 hm3), além do abastecimento público (2,5 hm3) e ainda do caudal a debitar para o couto mineiro de Neves Corvo (entre 1,3 e 1,5 hm3).

Até ao momento, a comissão administrativa da Associação de Beneficiários do Mira (ABM), que tomou posse em Julho passado para assegurar, entre outras atribuições de gestão, o fornecimento de água à campanha de rega de 2024, ainda não reuniu ou informou os agricultores sobre a dotação de água que vão poder utilizar. Neste sentido, o PÚBLICO solicitou esclarecimentos à ministra da Agricultura e da Alimentação (MAA), Maria do Céu Antunes, e à comissão administrativa da ABM, mas estas entidades não responderam às várias questões colocadas.

O nível de armazenamento da albufeira encontrava-se, na última quinta-feira (dia 21 de Dezembro), à cota 105,33 metros acima do nível do mar, o que equivale a 149.756.895 de metros cúbicos (m3). Desde 2019, foram captados do caudal morto de Santa Clara 95 milhões de m3.

Em termos comparativos, a sua coluna de água foi reduzida, durante os últimos quatro anos, em quase 10 metros. E continua a perder diariamente uma média entre 180 e 200 m3. Só poderão ser repostos “com a chuva intensa que possa vir a ocorrer durante dois anos”, salienta Manuel Amaro Figueira, presidente da direcção suspensa em Julho por determinação de Maria do Céu Antunes, para ser substituída por uma comissão administrativa.

O Despacho n.º 5084/2023 de 21 de Abril explica que a decisão de suspender a direcção eleita “teve por base a necessidade de garantir a boa conclusão da campanha de rega de 2023 e a adequada preparação da campanha de rega de 2024”. Esta era uma tarefa que a direcção suspensa não estaria em condições assegurar, num contexto em que “o nível de água da albufeira de Santa Clara tem vindo a descer a níveis de armazenamento muito baixos e a ser explorada no seu volume morto, como resultado de sucessivos anos com reduzidas afluências”, acentua o despacho.

Contudo, referiu ao PÚBLICO o presidente suspenso, a actuação da comissão administrativa “não alterou” o quadro descrito no despacho do MAA. Amaro Figueira antecipa o cenário para o próximo ano: com o volume actual existente em Santa Clara, “não é possível realizar uma campanha normal, nem pouco mais ou menos”, e a disputa pelo acesso à água vai acentuar-se, inevitavelmente, em 2024.

Sedimentos de décadas

Neste momento, não há consumo de água para rega a partir da albufeira, mas a reserva existente suscita apreensões nos pequenos agricultores e no executivo municipal de Odemira. A inquietação não é recente. Num comunicado datado já de 2021, chamavam a atenção para uma situação que “vem preocupando os autarcas, empresários e a população em geral, especialmente desde o ano 2019”. A barragem de Santa Clara “já não terá a sua capacidade preenchida com água, pois, ao longo de mais de 50 anos, é provável que esteja ocupada com sedimentos arrastados em cheias dos ribeiros afluentes e [resultantes da] erosão das encostas da barragem.”

Não foi a primeira vez que o fenómeno da sedimentação nas albufeiras mereceu atenção.

Um inventário apresentado em 2008 pelo Instituto Nacional da Água (INAG) sobre sedimentos depositados em 166 barragens portuguesas, e referido na Avaliação da Sedimentação em Albufeiras e Técnicas de Transposição e Reutilização dos Sedimentos, publicada em 2010, já apontava para a provável gravidade da situação.

Os especialistas em Hidráulica, Luísa Fernandes Lameiro e Francisco Taveira-Pinto, autores do trabalho e investigadores na Universidade do Porto, concluíam que a informação recolhida pelo INAG “é suficiente para estimar o volume de sedimentos acumulados em 151 das 166 inventariadas, na ordem dos 1568 milhões de metros cúbicos, o que significa que 12,5% da capacidade bruta total para o armazenamento de água (12.546 milhões de m3) estará, hoje, ocupada por sedimentos”.

Tejo e Alentejo com mais sedimentos

A estimativa do INAG refere ainda que “das 151 albufeiras com volumes de sedimentação estimados, cerca de 66% têm um volume de sedimentação inferior a 10% da sua capacidade bruta de armazenamento, 28% estão sedimentadas entre 10% a 50% e somente 6% estão sedimentadas em mais de 50% da sua capacidade bruta de armazenamento”.

A análise efectuada pelos investigadores da Universidade do Porto acentua que as albufeiras das regiões hidrográficas do Tejo e Alentejo “são as que apresentam uma maior quantidade de sedimentos disponíveis”. Com efeito, de todas as barragens incluídas no inventário do INAG, a de Santa Clara destacava-se, com uma estimativa calculada de 200,654 hm3, o maior volume de sedimentos de todas as albufeiras nacionais inventariadas, superando a carga sedimentar das barragens de Castelo do Bode (194,500 hm3), Cabril (105 hm3) e Alqueva (140 hm3).

Seca e incêndios aumentam sedimentação

Agora, Taveira-Pinto explica ao PÚBLICO que as “características orográficas e geográficas contribuem para a sedimentação mais acentuada”. Daí que quando se projecta a construção de uma barragem “é feita uma estimativa sobre a acumulação de sedimentos que pode vir a ocorrer no leito da albufeira”.

O docente na Universidade do Porto realça ainda “o contributo das situações de seca para um aumento da sedimentação, assim como os incêndios persistentes e intensos, que vieram acelerar a sedimentação nas albufeiras do centro e norte do país”, advertindo para a necessidade de se proceder à “verificação urgente” do grau de sedimentação das albufeiras.

Apesar da relevância dada pelo Plano Nacional da Água à necessidade de melhor compreender o comportamento do transporte de sedimentos, “não existe em Portugal, neste momento, uma estratégia delineada para a gestão dos sedimentos nas albufeiras”, o qual passa por um “levantamento sistemático destas situações, que não tem sido feito”, salienta Taveira Pinto.

Na primeira década do século em curso, os investigadores da Universidade do Porto já alertavam para esta importante lacuna: “Não há uma estratégia de gestão dos sedimentos, nem se reconhece a existência do problema da sedimentação das albufeiras.” A ausência de informação e de intervenção suscitou-lhes uma certeza: os sedimentos vão-se depositando nas albufeiras, e “será uma questão de tempo até surgir a necessidade de solucionar problemas relativos a albufeiras que deixaram de armazenar água e passaram a armazenar sedimentos”.

O exemplo de Santa Clara

O exemplo da barragem de Santa Clara, que pode ser replicado por dezenas de albufeiras nacionais, revela-se pertinente: para além da acumulação de sedimentos no leito da sua albufeira, as consequências deste fenómeno acabaram por se projectar a jusante. A infra-estrutura inaugurada em 1969 provocou o assoreamento da foz do rio Mira em Vila Nova de Milfontes, obrigando à retirada de 130 mil toneladas de areia do leito do rio, uma operação que decorreu em 2017 e obrigou ao investimento de cerca de um 1,7 milhões de euros.

André Matoso, director regional da Administração da Região Hidrográfica do Alentejo (ARH), na descrição que fez do processo de desassoreamento da foz do Mira explicou que a formação do banco de areia poderá ter tido na sua origem o “enfraquecimento do caudal do rio, após construção da barragem de Santa Clara”.

O PÚBLICO solicitou à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) o fornecimento de dados sobre o volume de sedimentos em Santa Clara, mas não foi dada qualquer resposta. A informação publicada por este organismo mantém inalterados os valores da cota de armazenamento de água existentes nesta albufeira desde 1969, que não tomam em linha de conta a acumulação de sedimentos.

Um cidadão, preocupado com a eventual ruptura do abastecimento de água à população de Odemira, interrogou, no mesmo sentido, a ARH, reclamando que fosse agendada para a barragem de Santa Clara a realização “urgente” de um levantamento batimétrico – técnica que permite mapear com precisão as profundidades e contornos de lagos, rios ou albufeiras.

Na resposta, a que o PÚBLICO teve acesso, André Matoso adiantou que a questão “irá ser devidamente encaminhada para o departamento central da APA”, para que seja “equacionada a realização de uma avaliação da batimetria” em Santa Clara. E acrescenta: com efeito, a avaliação do volume de sedimentos “acumulado no leito da albufeira de Santa Clara, ao longo dos anos, após a construção da barragem, é fundamental e necessária para se poder conhecer em maior detalhe qual o volume real de água armazenada em cada momento”.

E em conclusão esclarece: Não podemos deixar de referir que, lamentavelmente, a APA não está dotada dos meios técnicos necessários para a realização deste tipo de operações e enfrenta limitações de natureza orçamental para a respectiva contratação externa”, justifica o director regional da ARH Alentejo.