Uma vida no Reino Unido é cada vez mais impossível

O Reino Unido quer o impossível e o melhor dos dois mundos num misto de populismo e areia para os olhos — e o imigrante é o culpado mais à mão.

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Megafone P3: uma vida no Reino Unido é cada vez mais impossível Nuno Ferreira Santos

Já perdi as contas às vezes em que ouvi terceiros, em jeito de candura, a dizerem que "vocês foram embora na altura certa".

Nunca há uma altura certa para nos irmos embora quando o melhor é ficar — e ficar para sempre com quem mais queremos e quem mais nos quer. Uma coisa é certa: se fosse hoje o dia de partida, não seria possível partir e esta fuga para a frente não seria senão o regresso à fome.

A razão? Se no pós-"Brexit" já nos era exigido não só a garantia de emprego ao chegar à fronteira, mas também o salário mínimo de 26.200 libras anuais, de acordo com as novas regras para obtenção de visto de trabalho, esse salário mínimo subiu para a casa das 38.700 libras anuais. Há áreas de excepção (como as da saúde ou segurança social), mas com um salário inferior a esse valor vem a contramedida de não poderem trazer consigo, agora ou mais tarde, os respectivos cônjuges e dependentes.

O Reino Unido está cada vez mais fechado sobre si mesmo. A culpa, segundo as autoridades, é da imigração recorde de 745.000 almas no ano transacto, com o Governo a uma só voz a gritar que não chega para todos.

O sistema de pontos exige um mínimo de 70 pontos, somados entre o contrato de trabalho, o conhecimento da língua inglesa, a formação nas áreas de Ciências, Tecnologia, Engenharia ou Matemática e o tal ordenado mínimo — que de mínimo tem muito pouco, para não dizer nada.

Se por um lado o ensino de Ciências abre a porta a este que vos escreve, estivesse eu como estava em 2007 e o início da carreira associado à falta de experiência seriam o suficiente e mais um pouco para cortar as pernas e matar a esperança de uma vida por saciar desde Portugal, apesar da falta de dezenas de milhares de professores no Reino Unido (com as vagas hoje e sempre por preencher, principalmente nas disciplinas de Matemática e Ciências).

Há um milhão de postos de trabalho por preencher, resultantes da pandemia e da saída da União Europeia, e é provável que assim se mantenham num país onde o feudalismo impossibilita a mobilidade social e os britânicos são os maiores inimigos de si mesmos.

O Reino Unido quer o impossível e o melhor dos dois mundos num misto de populismo e areia para os olhos — e o imigrante é o culpado mais à mão.

O mesmo imigrante que é obrigado a pagar até agora uma anuidade de 624 libras para poder continuar a trabalhar no reino de Sua Majestade, anuidade encapotada como uma taxa de saúde, não obstante os descontos já efectuados pelo trabalhador. E sim, a partir de Janeiro, a mesma anuidade passará para a casa das 1035 libras. Tudo isso associado aos óbvios custos administrativos para quem pretende aqui trabalhar, nunca menos de 719 libras até um tecto máximo de 1500 libras.

Conclusão: tivesse eu esta capacidade económica e não teria saído de Portugal. Só quem tem uma boa almofada financeira pode esperar exercer o seu mester no Reino Unido. Boas notícias: se até agora as vagas por preencher podiam ser ocupadas por um imigrante, sob a premissa de um salário 20% inferior, a partir do próximo ano tal não será permitido. As más notícias prendem-se com a óbvia falta de imigrantes para beneficiar dessa paridade.

E para os britânicos casados ou em união de facto com um imigrante nada está garantido, estando o cônjuge em risco de não poder ficar caso o outro elemento do casal não ganhe pelo menos 38.700 libras e centenas de milhares de famílias desfeitas numa terra onde apenas os mais abastados têm direito a uma vida conjugal. As palavras não são minhas, mas de Gavin Barwell, ex-chefe de gabinete de Theresa May e ele próprio um conservador.

Quando se comemoram os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não nos esqueçamos do artigo 14.º e do direito a todos as vítimas de perseguição a procurar asilo noutros países. Diante de factos, não é preciso mencionar o Ruanda e os ruandeses que, de certeza, não têm culpa. Os refugiados e imigrantes também não.

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