O Papa Francisco deu um passo gigante e eu quero que o reconheçam

Este é um passo gigante na direção que muitos esperam e que tem tardado. Falo da plena inclusão dos católicos LGBT na Igreja.

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Não é só na política, nacional e internacional, que se vivem tempos interessantes. Na Igreja Católica, e ao mais alto nível, também. O que se está a passar é importante.

Eventualmente, já terei aqui deixado transparecer a minha simpatia e admiração pelo Papa Francisco. É um facto e se era improvável. Este homem está a protagonizar uma mudança suave, mas profunda, numa das instituições mais poderosas e representativas que conhecemos. Falo-vos da aproximação à causa LGBTQ+.

No início de outubro, este jornal noticiava a possibilidade, avançada por Francisco, de dar bênçãos a casais do mesmo sexo. Na altura, o Papa respondia a cinco cardeais, da ala mais conservadora da Igreja, que o tinham desafiado a afirmar os ensinamentos da Igreja sobre a homossexualidade. São críticos e opositores de Francisco, todos eles nomeados por João Paulo II ou pelo Papa Bento XVI e avessos aos ventos de mudança que sopram no Vaticano.

Esse desafio teve antecedentes. Em 2016, quando o Papa Francisco permitiu que casais divorciados recebessem a comunhão, foi confrontado com uma ronda de perguntas. Os cardeais signatários estavam então preocupados com a violação do princípio da indissolubilidade do casamento. Francisco não terá respondido, mas, desta vez e a propósito do desafio dos cinco cardeais, respondeu. Acontece que a sua resposta foi considerada insatisfatória.

Os cinco cardeais não publicaram essa resposta do Papa Francisco, mas reformularam as suas perguntas e endereçaram-nas novamente. Pediram-lhe que respondesse simplesmente com um “sim” ou com um “não”. Perante essa solicitação, o Papa voltou a não responder. E eis que os cardeais decidiram tornar os textos públicos e emitir um aviso aos fiéis.

Conto-vos, de forma abreviada, esta interação entre os cardeais conservadores e o Papa Francisco para vos dar conta de que uma luta está a ser travada. Mais: que essa luta tem resultados visíveis. Esta semana soubemos de uma histórica decisão deste Papa. Vai mesmo permitir aos padres católicos que deem bênçãos a casais do mesmo sexo. Este é um passo gigante na direção que muitos esperam e que tem tardado. Falo da plena inclusão dos católicos LGBT na Igreja.

Antevejo que muitos dirão, e com razão, que falta bastante para chegar esse momento. Mas a esses quero dizer que, desta vez, é necessário que olhemos para o copo meio cheio: nunca estivemos tão perto.

Os cinco cardeais que desafiaram Francisco representam milhões de fiéis que teimam em fazer uma interpretação literal dos ensinamentos originais da Igreja e que, em nome desse princípio, preferem excluir e discriminar a comunidade LGBT. É sobretudo dramático que o façam nas suas relações, muitas vezes no seio das próprias famílias.

Se muitos preferem desvalorizar a importância deste avanço, outros dirão que é um tema que não lhes interessa. O argumento é: quero lá saber da validação de uma instituição obsoleta em relação à minha identidade ou às minhas escolhas. Sucede que para muitas pessoas LGBT esta é uma questão fundamental. São católicos e este processo marca a possibilidade da sua aceitação plena na comunidade. Como poderíamos ser indiferentes a isto?

Na declaração que anunciou esta decisão pode ler-se que aqueles que pedem uma bênção “não devem ser obrigados a ter perfeição moral prévia”. Está aqui um princípio moral e ético que deveria ser interpretado extensivamente e aplicado a muitas outras situações. Observo que, fora da Igreja e entre nós, está cada vez mais instituída a avaliação do outro em detrimento da autoavaliação. Em vez do “Por minha culpa, minha tão grande culpa” vemos “A culpa é tua, erraste.” Esta falta de autoavaliação e a acusação do outro costumam vir acompanhadas da negação de perdão. Ser implacável é um culto. E é este triunvirato que marca o debate público desgraçadamente. Isto para dizer que ser moralmente perfeito não pode ser requisito para nada. Nota positiva à declaração.

O Papa Francisco deu um passo gigante na direção certa e – como Jules Winnfield, interpretado por Samuel L. Jackson, exigiu a Vincent Vega, interpretado por John Travolta, que reconhecesse que tinham acabado de assistir a um milagre, vocês sabem em que filme – eu gostava que todos o reconhecessem.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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