Burnout nos jovens médicos portugueses: uma questão urgente para o futuro do SNS

Apenas cuidando da saúde mental dos profissionais mais jovens é possível garantir que o SNS tenha os recursos humanos necessários para sobreviver nas próximas décadas.

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Megafone P3: Burnout nos jovens médicos portugueses – uma questão urgente para o futuro do SNS Manuel Roberto
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À medida que a natureza das condições de trabalho no SNS se torna cada vez mais evidente, o burnout emerge como uma realidade incontornável para muitos jovens médicos portugueses.

Um estudo realizado este ano pelo Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI) da Ordem dos Médicos concluiu que 25% dos mais de 1700 médicos inquiridos apresentavam sintomas severos de burnout.

Estes dados não só traduzem uma carência de estratégias que visem a saúde mental dos profissionais de saúde no SNS como uma realidade laboral sombria, difícil de sustentar o Serviço Nacional de Saúde a longo prazo.

O burnout é um fenómeno ocupacional particularmente prevalente em profissões que contactam quotidianamente com pessoas, como é o caso dos cuidados de saúde. Ao desenvolverem frequentemente relações interpessoais intensas com pessoas em sofrimento, os profissionais de saúde encontram-se numa situação particularmente vulnerável ao desgaste e esgotamento emocionais.

Com o arrastar do tempo, isto pode resultar no desenvolvimento de burnout. Embora o fenómeno varie de país para país e de acordo com a idade, género e categoria profissional, a evidência mostra que a síndrome afecta de forma significativa os médicos, encontrando-se um aumento da sua expressão nesta classe profissional nos últimos anos.

O burnout tem consequências devastadoras para o médico, podendo levar ao desenvolvimento de perturbações de ansiedade, depressão e, em último caso, suicídio. Vários estudos relacionam o fenómeno do burnout com determinadas características do ambiente de trabalho, nomeadamente carga laboral, relação entre pares e autonomia do médico no desempenho das suas funções.

O estudo realizado pelo CNMI este ano apurou que em média os jovens internos inquiridos realizam mais de 52 horas de trabalho semanais. Somadas, isto traduz-se anualmente em dois meses e meio extra de trabalho.

A sobrecarga laboral implica cedências importantes na esfera pessoal dos jovens médicos, diminuindo a possibilidade de existirem mecanismos de escape para lidar com o stress do dia a dia. O desgaste emocional condicionado pelo trabalho tem implicações claras não só a nível da vida pessoal do profissional de saúde como também na qualidade dos cuidados prestados aos doentes.

Sob a alçada de um médico em burnout, o paciente fica mais susceptível de sofrer erros no seu tratamento assim como cuidados frios e desumanos do ponto de vista relacional. De forma impressionante, o nosso estudo observou que apenas 5% da amostra correspondia a trabalhadores plenamente envolvidos no seu trabalho (um contraste sombrio com estudos internacionais onde esta percentagem ascendia aos 20%).

Mais ainda, para além dos 25% de médicos internos com sintomas severos de burnout, 55% já apresentavam sintomas avançados da síndrome, encontrando-se sob o risco de desenvolverem a totalidade do fenómeno a médio prazo. Estes números devem constituir um sinal de alerta face a um problema premente do internato médico português.

Precisamos não só de mais investigação nesta área como também de estratégias que combatam este fenómeno, a diferentes níveis. As soluções para este problema têm sido tradicionalmente colocadas na esfera do indivíduo, procurando aumentar a resiliência do trabalhador face a condições de trabalho extremamente adversas.

De forma impressionante, o nosso estudo revelou que 65% dos médicos em início de carreira inquiridos apresentavam sintomas graves de exaustão emocional, um fenómeno que a evidência mostra estar intimamente relacionado com sobrecarga laboral. É cada vez mais claro que as intervenções para o fenómeno de burnout têm de ser dirigidas não só ao indivíduo como também (e principalmente) à organização.

É necessário um olhar atento sobre o ambiente de trabalho do SNS com intervenções que visem uma melhor organização de trabalho, programas formativos de internato adaptados à realidade do médico interno e uma menor carga laboral sobre estes profissionais.

Em suma, para além da revisão da grelha salarial, precisamos de uma visão para o SNS que tenha em vista a saúde mental dos seus profissionais. É igualmente urgente abordar aspectos insidiosos da cultura médica, cuja romantização leva frequentemente os jovens médicos a negligenciarem os autocuidados, em particular no que à saúde mental diz respeito.

Ao ser comparada a uma vocação, a profissão médica cria uma narrativa de abnegação e aceitação incondicional de condições laborais adversas, acelerando o desgaste associado a uma profissão que de base é pautada por uma elevada exigência e pressão emocionais.

Este ano, mais de um em cada cinco jovens médicos preferiram não iniciar formação especializada. As 406 vagas que ficaram por escolher retratam o despertar dos médicos em início de carreira para as condições de trabalho que os esperam.

Sabemos que especialidades basilares do SNS como medicina interna (onde ficaram por preencher 58,1% do total das vagas) são particularmente afectadas por condições laborais altamente exigentes e stressantes. Caso não consigamos atrair novos médicos para estas especialidades, o sistema de saúde actual arrisca-se a ruir.

A captação de novos médicos no SNS tem de passar forçosamente por uma abordagem séria sobre os problemas que os médicos enfrentam no ambiente de trabalho dos dias de hoje, garantindo o bem-estar psicológico destes profissionais. O estudo realizado pelo CNMI vem reforçar a necessidade de serem criadas medidas específicas a vários níveis que atenuem os números de burnout observados.

Apenas cuidando da saúde mental dos profissionais mais jovens é possível garantir que o SNS tenha os recursos humanos necessários para sobreviver nas próximas décadas. Precisamos destes profissionais saudáveis e aptos a cuidar para permitir a continuação da missão primordial do Serviço Nacional de Saúde: garantir de forma universal que todas as pessoas no nosso país têm acesso aos melhores cuidados de saúde existentes.

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