Inteligência artificial: inovar com passos seguros

Em Portugal, estão em curso diversas iniciativas de transformação da Justiça que utilizam tecnologia de Inteligência Artificial.

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O acordo político alcançado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho sobre o Regulamento de Inteligência Artificial (IA) da União Europeia representa um passo importante na criação de condições para o desenvolvimento tecnológico e a promoção da inovação, assegurando, simultaneamente, a proteção dos direitos fundamentais.

Ao longo dos anos, muito se tem debatido sobre a pertinência e até o tempo associado a várias iniciativas regulatórias no domínio da tecnologia na Europa, vistas como entraves à inovação e competitividade, face a outros blocos mundiais.

Mas não nos esqueçamos que num mercado europeu feito de tantas realidades, línguas, e antigas fronteiras tão rígidas, foi a existência desta regulamentação que possibilitou que hoje se possa viajar para qualquer Estado-membro sem barreiras de roaming e com autenticação forte digital comum. Mais recentemente, a introdução de simples normas padronizadas sobre o USB-C vieram acabar com uma multiplicidade de modelos dos vários fabricantes, promovendo, além disso, a sustentabilidade. Nenhuma destas medidas criou entraves, pelo contrário, contribuíram para promover um melhor mercado europeu.

E foi no âmbito deste mesmo esforço regulatório que muito se avançou na proteção de dados na Europa com um regulamento na altura polémico e que parecia de difícil aplicação, mas que é hoje um garante da proteção dos princípios, direitos e privacidade de todos os cidadãos, de que a Europa se deve orgulhar.

A promoção da competitividade e do desenvolvimento de um ecossistema de inovação não pode estar em concorrência com os princípios que fazem da Europa um espaço de liberdade, de democracia e de princípios éticos.

É neste contexto que, com este passo de regulamentação numa área como a Inteligência Artificial – um domínio cada vez mais central e inevitável nas nossas sociedades –, a Europa tenta encontrar o equilíbrio entre os enormes benefícios da Inteligência Artificial e a sua utilização responsável.

Na Justiça em particular, a utilização da IA, e muito particularmente da tecnologia de machine learning, abre o caminho para diversas vantagens, como: maior eficiência, ao possibilitar a automatização de tarefas de rotina, permitindo alocar as pessoas a funções onde acrescentam mais valor; pesquisa em grandes volumes de informação; ou apoio ao cidadão na obtenção de informação, em linguagem mais clara, sobre a oferta dos vários serviços de Justiça, reduzindo deslocações e aumentando a conveniência, sem que tal substitua as devidas competências dos profissionais da Justiça, nomeadamente dos mandatários.

Em Portugal, estão em curso diversas iniciativas de transformação da Justiça que utilizam tecnologia de IA, como: algoritmos para facilitar a anonimização de decisões judiciais, que permitem reforçar a eficiência e, em simultâneo, a transparência; os sistemas de pesquisa inteligente em desenvolvimento nas novas interfaces específicas para os magistrados, que tornam possível a procura avançada de informação relevante em milhões de documentos, incluindo multimédia; as propostas de criação de sumários para decisões, que o magistrado poderá depois utilizar; ou ainda algoritmos inovadores, no caso do Balcão Único do Prédio, que ajudam os proprietários a mais rapidamente localizar e até desenhar as suas propriedades rústicas.

Nenhum destes exemplos se integra na tipologia de sistemas inaceitáveis previstos no novo Regulamento. Pelo contrário, inserem-se ou em sistemas de baixo risco ou nos que, integrando risco elevado, já antecipam as preocupações constantes no documento, fundadas no controlo humano, na robustez ou na cibersegurança. Portugal tem, aliás, ativamente acompanhado e contribuído para as discussões europeias no que respeita a utilização da IA nos sistemas da Justiça, defendendo a posição de que “as decisões devem ser sempre tomadas por pessoas e não podem ser delegadas em ferramentas de IA.”

Todas as iniciativas inovadoras, implementadas para modernizar a Justiça, devem proteger os direitos dos cidadãos e garantir a ética digital, a cibersegurança e a identidade digital, como elementos sine qua non para construir um ecossistema digital público transparente.

Mas, simultaneamente, tal princípio não deve criar obstáculos à capacidade de experimentar, de inovar e, sobretudo, de compreender melhor estas tecnologias, investindo nas competências dos trabalhadores da administração pública para melhor responder aos desafios da sociedade, através da inovação.

No início deste ano, lançámos o Guia Prático da Justiça, um dos primeiros sistemas públicos a utilizar IA generativa, da tecnologia GPT, para esclarecer os cidadãos, cingindo-se, no entanto, as suas respostas apenas às fontes de informação públicas da Justiça. Atualmente, este serviço fornece informação sobre os temas do casamento e divórcio e da criação de empresa, estando previsto o seu alargamento a outros domínios da Justiça.

Projetos como este são exemplo da necessidade de experimentar e testar o potencial da tecnologia para conhecer os riscos e implementar soluções que os previnam, sem deixar de permitir, simultaneamente, compreender as enormes vantagens dos resultados que se podem alcançar; neste caso, já foram geradas mais de 30 mil conversações sobre a vasta oferta de serviços da Justiça, em linguagem clara e com uma taxa de relevância da informação já superior a 98%.

É, pois, essencial garantir, por um lado, que os algoritmos desenvolvidos são fundados em princípios éticos, e, por outro, que podem ter as suas regras publicitadas e até serem reutilizados por outras organizações públicas, promovendo boas práticas e a partilha de recursos.

Os próximos tempos de desenvolvimento de serviços e inovação utilizando IA trazem-nos enormes oportunidades. Neste caminho, será ainda particularmente relevante que Portugal, que partilha uma das línguas mais faladas a nível mundial, possa também posicionar-se numa estratégia além-fronteiras que permita definir caminhos para a IA em português.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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