Aranha rara, “desaparecida” há 92 anos, redescoberta numa aldeia da Beira Alta

É uma aranha tímida e que esconde bem a “porta” de casa. A buraqueira-de-Fagilde não era vista desde a sua descrição, em 1931. Agora, cientistas avistaram-na de novo numa aldeia de Mangualde.

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Uma aranha buraqueira-de-Fagilde, fêmea, reencontrada pelos cientistas neste ano numa aldeia de Mangualde, na Beira Interior Sérgio Henriques/DR
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Estas não são umas aranhas quaisquer: são discretas, capazes de passar anos dentro da toca, tecem portas “perfeitas” para os buracos que habitam e, o que é invulgar para estes aracnídeos, parecem apreciar zonas de floresta. As buraqueiras-de-Fagilde (Nemesia berlandi) são tão raras que, desde que foram descritas em 1931, nunca mais foram avistadas. Isto até uma dupla de cientistas as redescobrir recentemente numa aldeia de Mangualde, na Beira Alta.

“É como ganhar a lotaria no momento exacto em que somos atingidos por um raio – é preciso mesmo muita sorte. E perseverança também”, diz ao PÚBLICO Sérgio Henriques, coordenador para a conservação de invertebrados no Global Center for Species Survival, nos Estados Unidos.

O investigador tentou com colegas em 2011 – embora em vão – encontrar as buraqueiras-de-Fagilde nas florestas à volta da aldeia que lhes dá nome. Encontrou pequeninos túneis horizontais (pouco usuais entre as aranhas) que indiciavam a presença da Nemesia berlandi na região. Passaram-se muitos anos em que não foi possível, por falta de recursos, organizar uma nova expedição.

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A buraqueira-de-Falgide é uma espécie endémica redescoberta este ano numa área florestal de uma aldeia homónima em Mangualde Sérgio Henriques/DR

Uma década depois, com um apoio da organização Re:wild, Sérgio Henriques, em parceria com o biólogo Pedro Sousa, conseguiu os fundos necessários para voltar a Mangualde à procura de “um bilhete premiado” da ciência.

Entre Agosto de 2021 e Novembro de 2023, Sérgio Henriques e Pedro Sousa passaram muitas horas de vários dias sentados no chão a olhar muito atentamente para o solo, varrendo de forma sistemática o microhabitat onde, há 92 anos, a aracnóloga Amélia Bacelar (1890-1976) observou e descreveu a espécie Nemesia berlandi, cujo tamanho pode chegar aos 2,2 centímetros.

“O que esta buraqueira faz é muito inteligente: ela tem uma toca perfeita, com uma tampa que mimetiza exactamente o que houver à superfície. Se houver musgo, a tampa tem musgo. Se houver folhas, a tampa tem folhas”, explica Sérgio Henriques.

O objectivo deste “varrimento do solo” é tentar identificar as tais portas “perfeitas” que protegem as cavidades onde habitam as buraqueiras (e daí o nome). Se há tampas a proteger pequenas grutas, existe também a possibilidade de encontrar especímenes. Neste ano, Sérgio encontrou numa toca uma aranha fêmea adulta a cuidar de dez crias.

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“As buraqueiras-de-Fagilde têm das tampas mais bem disfarçadas do mundo”, garante Sérgio, que já andou no encalço de outros tipos de buraqueiras em diferentes países, incluindo a Malásia e os Estados Unidos.

“É tão bem disfarçada que eu, depois de ver a tampa e ver a toca, mesmo sabendo onde está, já não consigo encontrar. Há duas razões para isso: a aranha usa essa interface para se proteger de predadores e, ao mesmo tempo, como estratégia de caça a uma presa próxima”, explica o cientista.

Bacelar e a biologia molecular

Sabe-se muito pouco sobre as buraqueiras-de-Fagilde. Muito do que se sabe hoje – sobretudo aspectos morfológicos – remonta a 1931, quando Amélia Bacelar descreveu a espécie, juntamente com o marido, o zoólogo Fernando Frade (1898-1983), a partir das observações feitas na aldeia de Fagilde.

“O que sabemos hoje deve-se sobretudo à descrição original que a Bacelar deixou registada na literatura científica. O macho da espécie, por exemplo, nunca foi recolhido”, diz Sérgio Henriques, para explicar como faltam peças importantes para conhecermos melhor a Nemesia berlandi.

O biólogo Pedro Sousa explica que só se consegue diferenciar bem as espécies quando estas são adultas, uma vez que se observa os caracteres sexuais secundários dos aracnídeos: os pedipalpos dos machos (que, no caso desta espécie, se encontram modificados como órgãos copuladores, transferindo esperma) e as vulvas das fêmeas.

“Amélia Bacelar era uma pioneira da investigação, estava muito à frente do seu tempo, era admirada por colegas em toda a Europa. Manteve o nome de solteira ao longo da carreira científica, o que era muito raro, talvez até hoje. Mas ela usou a metodologia que se usava na altura”, diz Sérgio Henriques.

No caso das buraqueiras-de-Fagilde, estas características não eram muito utilizadas na altura, até porque os exemplares que havia eram de fêmeas. Ainda assim, a equipa encontrou nos especímenes contemporâneos características idênticas às descritas pela entomóloga portuguesa.

“Para ser específico, Bacelar descreve a fêmea como tendo a cabeça mais levantada, por exemplo, ou uma mancha na parte anterior do dorso. Portanto, a comparação do que diz a literatura científica com o que vemos na natureza, ainda mais tendo sido recolhida exactamente na mesma aldeia em que Bacelar a recolheu há cerca de 100 anos, deu-nos esperança de que se tratava do mesmo animal”, refere o cientista radicado nos Estados Unidos.

A confirmação veio com o recurso à biologia molecular. Análises de ADN, realizadas no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (Cibio-InBio), permitiram comparar os resultados com os de outras espécies, cotejando amostras de diferentes buraqueiras, num processo de exclusão. Os cientistas confrontaram os dados obtidos com os de espécies do norte, de Coimbra e do resto do país, num exercício que permitiu verificar que esta espécie não é geneticamente idêntica a outras do género Nemesia.

Sapatear à porta de casa

É comum a referência ao facto de o macho da buraqueira-de-Fagilde sapatear à porta da toca, enviando assim um sinal de um possível acasalamento. Mas, de facto, os cientistas nunca observaram até hoje um indivíduo do sexo masculino. Estima-se que esta prática sirva para alertar as fêmeas não só para a oportunidade de cópula, mas sobretudo para o facto de o macho não ser uma presa potencial.

“É muito importante para os machos das aranhas, em geral, garantir que as fêmeas saibam que não constituem comida. Há machos que vibram a teia, tocando como se fosse uma guitarra com cordas, uma ‘música’ que anuncia à fêmea que não se trata de alimento. Todas as aranhas buraqueiras, ou muitas delas, terão então esta dança particular, esse tamborilar, uma vibração que elas emitem no solo, e que ‘diz’ à fêmea do que é que se trata”, refere Sérgio Henriques.

Por outras palavras, sabemos que a biologia destes animais costuma implicar uma espécie de “comunicação” pré-cópula, mas não é possível afirmar se as buraqueiras-de-Fagilde praticam esse ritual ou quais são as suas características exactas.

“Se elas cantam e dançam, se vibram com a barriga ou com as patas, ainda é completamente desconhecido. O macho nunca foi visto. É desse tipo de conhecimento [limitado] que estamos a falar”, diz Sérgio Henriques.

A descoberta tem “grande importância” para a área da conservação precisamente porque o conhecimento sobre esta espécie é escasso. “Se não encontrássemos esta espécie, ou ela estaria extinta ou não teríamos o conhecimento básico para a tentar proteger”, diz Sérgio Henriques. Este projecto apoiado pela organização de conservação da natureza Re:wild foi o primeiro passo.

Uma pastelaria de Falgide produziu bolos decorados com as buraqueiras para as visitas dos cientistas às escolas locais Cortesia da Quinta da Tapada
Os bolos começaram a ser produzidos em Fagilde para acompanhar as apresentações dos cientistas nas escolas Cortesia da Quinta da Tapada
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Uma pastelaria de Falgide produziu bolos decorados com as buraqueiras para as visitas dos cientistas às escolas locais Cortesia da Quinta da Tapada

Os passos seguintes passam pela sensibilização da população de Fagilde – que, segundo os cientistas, tem sido até aqui o esteio que permitiu a descoberta em 2023. Isto porque cuidam dos solos, numa lógica de gestão tradicional, mantendo um mosaico que permite que a floresta coexista com pequenos olivais ou carvalhais. Há taludes e caminhos que, ao que tudo indica, oferecem espaços estáveis às quais a espécie estará adaptada.

As iniciativas de educação ambiental passam não só por visitas às escolas locais, onde tiveram oportunidade de falar com “cerca de 130 crianças” e articular com as equipas pedagógicas, mas também por uma parceria com uma pastelaria local, que produziu bolos decorados com as aranhas buraqueiras-de-Fagilde.

“É uma aranha rara e nós queremos ajudar na protecção desta espécie. Costumamos ter na montra alguns cupcakes com a aranha para divulgação. Começámos por fazer a aranha com uma teia e um buraquinho mas, depois, ajustámos o modelo, uma vez que a nossa aranha, afinal, não produz este tipo de teia”, explicou ao PÚBLICO Alexandra Correia, responsável da pastelaria Quinta da Tapada.

Sérgio Henriques conta que a família Correia chegou a ajudar a apagar um fogo que deflagrou, há cerca de uma década, perto do microhabitat onde a buraqueira foi redescoberta. “Foi o cuidado da população local e as suas práticas florestais que permitiram que a buraqueira-de-Fagilde continuasse na região e pudesse ser reencontrada. As crianças serão as futuras guardiãs desta espécie para que, daqui a 100 anos, ela ainda lá esteja”, conclui.

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