Defensores dos direitos das mulheres, a sério?

Alguns Estados-membros, liderados pela França e pela Alemanha, estão a tentar condicionar as ambições da primeira lei europeia para combater a violência contra as mulheres.

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Deverá a violação ser reconhecida como uma forma de violência contra as mulheres a nível europeu? Se a pergunta lhe parecer bizarra, espere até conhecer a resposta de alguns Estados-membros. Uma estranha batalha, tão oculta quanto importante, decorre em Bruxelas há vários meses. Oculta porque coloca a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e os representantes dos países da UE uns contra os outros, mas nos bastidores. Crucial, porque diz respeito a milhões de mulheres europeias.

Alguns Estados-membros, liderados pela França e pela Alemanha, estão a despender esforços consideráveis para condicionar as ambições da primeira lei europeia para combater a violência contra as mulheres.

Este texto, proposto pela Comissão Europeia em 2022 e posteriormente alterado pelo Parlamento, propõe algo novo que deveria ser consensual: uma definição à escala europeia da violência que afeta particularmente as mulheres, nomeadamente a violação, a mutilação genital feminina, o assédio digital, a partilha não-consensual de imagens íntimas e o casamento forçado. Além da definição, os legisladores introduziram um catálogo de sanções para harmonizar a resposta penal a nível europeu, de modo a não criar lacunas legais em questões tão importantes.

O Parlamento, impulsionado pelo Grupo do Partido Popular Europeu, já adotou a sua posição e está atualmente a negociar a versão final da diretiva com os Estados-membros. E é aqui que as coisas ficam complicadas. Por mais improvável que possa parecer, Emmanuel Macron e Olaf Scholz estão a pisar no travão. Em particular, encontram-se num impasse quanto à ideia de incluir a violação baseada na ausência de consentimento na definição de violência e nas penas associadas. No que lhes diz respeito, a resposta é: não há definição comum, não há sanções comuns, não há proteção comum. Não há nada.

Como pode Macron, que está tão orgulhoso do legado de Simone Veil, opor-se a tal coisa? Como pode Scholz, o portador do ideal socialista e pretenso defensor da igualdade de género, fazer o mesmo? A resposta não é óbvia e demonstra uma visão confusa da lei.

Para justificar as suas ações, estes Estados argumentam que não existe base jurídica. A violação não seria “exploração sexual de mulheres e crianças” na aceção do artigo 83.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que serve de base jurídica para esta diretiva. Uma interpretação surpreendente, dado que este é precisamente o princípio em que a UE baseou a sua legislação para combater o “abuso sexual de crianças”. Legislação que a França e a Alemanha adotaram sem pestanejar.

Por parte da Comissão e do Parlamento Europeu, continuamos a acreditar que este texto seria fundamental para proteger as vítimas. Todos os anos, são registadas mais de 100.000 violações na União Europeia, segundo o Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Económicos de França (INSEE), sendo as mulheres as vítimas na grande maioria dos casos. Em Portugal, de acordo com um inquérito promovido pela Universidade do Minho, e divulgado neste mês, 45% das vítimas de violência interpessoal já foram agredidas sexualmente. Não seremos capazes de proteger estas pessoas, nem mesmo de começar a melhorar a situação, com uma lei escassa.

Com uma nova ronda de negociações em curso, possivelmente a última, entre as partes interessadas, esperamos que Macron e Scholz mudem de ideias e concordem em incluir a violação nesta lei sem precedentes. É o mínimo que podem fazer para que os seus grandes discursos sobre a importância dos direitos das mulheres coincidam com ações concretas.

As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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