O Coração Ainda Bate. A harmonia

Inês Meneses lembra que não basta escrever ou dizer as palavras.

Agarro agora mesmo no livro que comecei a ler ontem e de onde sublinhei: “Conhece o sítio de onde vens. Quando sabes de onde vens, não há limites para onde podes ir” (James Baldwin, página 20, “Da próxima vez, o fogo”). O livro empurra-me para dentro de mim. Encontro nele hoje as palavras que me fazem sentido.

De manhã estremeci com a notícia da morte de uma amiga com quem tinha brindado ainda há dias, pela vida plena dela. Pelas nossas vidas. Esta ideia de que vamos dormir e um de nós já não acorda é aterradora. Não nos assusta a vida? Assusta muito, mas então o que fazemos? Temos de continuar a brindar.

Há dois dias fui ver “Maestro”, filme que Bradley Cooper andou a preparar durante anos sobre a vida de Leonard Bernstein. Saí do cinema extasiada. Vim pela rua a estender o pensamento a cada passada. Na verdade, ainda não saí do filme porque não quero. Apetece-me pensá-lo. Por isso precisamos do cinema e da literatura, das palavras dos outros, dos brindes com os nossos. A vida só existe plenamente se criarmos harmonia com os outros. Troquei a ideia de felicidade, que sempre me pareceu megalómana, pela harmonia. Foi a Pilar del Río que me lembrou dessa troca sensata a que José Saramago aludia. A harmonia é mais acessível, dizia-me ela, e, sim, menos egoísta. Penso muito sobre essa harmonia que pouco interessa a muitos. Devia ser um princípio básico da nossa existência, viver em harmonia, e com isso atravessaríamos a vida de forma mais justa, mais pacífica, e nós, que vivemos sempre com fantasmas mesmo quando pensamos não lhes dar atenção, também nós viveríamos apaziguados com os nossos.

Criamos harmonia quando prestamos atenção aos outros. Quando não fazemos de conta que a senhora atrás de nós não consegue tirar sozinha o carrinho das compras. Quando estamos enterrados no telemóvel e nem olhamos sequer para a pessoa que nos atende, como se não fosse um rosto igual ao nosso. Eu não tenho nada a mais do que os outros – aliás tenho: conforto. Julgo ter saúde, mas não há em mim soberba alguma para, de cima de um pedestal, decretar o que é bom e mau, o que tem qualidade, quem merece ser reconhecido.

Ainda ontem a Isabel estava viva. Ela que fazia rir os amigos e erguia o copo com todos. A sério que há gente que teima em olhar para baixo, como se algum de nós estivesse realmente acima dos outros? O dinheiro separa-nos? Definitivamente. Leva-nos a decisões que escorraçam muitos desse conforto e dessa saúde que deviam estar à partida garantidos à nascença. Fui buscar o verbo “escorraçar” de novo a James Baldwin, ele que, por ser pobre, negro e gay, passou a vida a ser escorraçado, a ver os seus a serem insultados. Levados da dignidade. O dinheiro definitivamente separa-nos mas não garante eternidade. Na hora de irmos dormir ninguém pode dizer que estará acordado na manhã seguinte. O dinheiro não é um passaporte para a vida eterna. É um bilhete que nos permite viagens diversas, algumas (muitas mesmo) acessíveis a poucos. Mas, e depois? O que se faz com o dinheiro quando ele não contribui em nada para a harmonia colectiva? Que pessoas são essas que se entregam ao Natal, não percebendo que nunca lhe conheceram realmente o espírito?

Arrumo os meus dias em palavras diversas. Por agora agarro-me a esta velha sábia 'harmonia', sobre a qual nunca tinha pensado verdadeiramente. Quantos a empregam? Quantos a praticam? Não basta dizer ou escrever as palavras. É preciso pô-las em prática. As palavras não ficam bonitas só por serem arrumadas nas vossas estantes ou na minha boca. As palavras só ganham um verdadeiro sentido quando são materializadas.

A harmonia: fui ao encontro dela e agora não a quero largar.

O coração ainda bate.

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