E depois queixem-se

Não quero que o meu país seja uma coutada onde obscuros caçadores disparam contra os alvos que lhes apetece, falham discretamente quando isso é conveniente e consideram-se acima de tudo e de todos.

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No editorial do PÚBLICO no dia da Restauração da Independência, David Pontes enumera as consequências de uma outra independência, neste caso a da procuradora adjunta Maria José Fernandes, face a uma Procuradoria-Geral da República “ocupada” por um sindicato agressivo: “A ousadia de Maria José Fernandes recebeu obviamente a crítica do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, uma participação do director do DCIAP e a abertura de um inquérito pela parte da PGR”.

O problema resultou de um artigo de opinião, onde com bastante serenidade se pergunta “Ministério Público: como chegamos aqui?”, referindo-se ainda que implicitamente ao insólito comportamento do Ministério Público nos últimos casos mais mediáticos. O título despertou-me reminiscências do tempo da “outra senhora” em que também fui vítima de um suposto delito de opinião.

No rescaldo da Crise Académica de 69 em Coimbra, e depois de passar por várias cadeias, fui enviado prematuramente para Mafra. Alegadamente por falta de material para publicação no jornal Azimute, a folha de couve da unidade, fui intimado a apresentar um texto sob o juramento de bandeira, sob pena, se não o fizesse, de o pelotão não ser autorizado a ir a casa no fim-de-semana.

Como é óbvio esta intimação tinha por trás o facto de a dita cerimónia de juramento de bandeira ter corrido mal, quando no refeitório os soldados cadetes começaram a entoar a canção de Zeca Afonso Os Vampiros e o general comandante da arma de Infantaria ter desertado porta fora, enquanto na sala ecoava “Eles comem tudo e não deixam nada”.

À provocação castrense de me transformar em jornalista, respondi com um texto em que se questionava a cerimónia: "O Juramento de Bandeira, para além de outras finalidades, tem essa, de ordem moral,… Esquece-se todavia, que um juramento feito sob coacção não tem qualquer valor.” Mais adiante caricaturava-se a cerimónia: "A cerimónia é abrilhantada pela presença dum oficial superior, que envergando a sua melhor n.º 1 ocupa o lugar de honra.”

Prisão na Trafaria, despromoção e guerra em África como soldado raso foi o saldo negativo da bravata.

Pois agora, quando a liberdade de expressão passou a fazer parte da nossa cultura, vejo com indignação alguém por muito menos ser ameaçado por ter escrito algo justo, ponderado e pertinente; vejo o renascer de escutas telefónicas durante meses ou anos, acusações de autarcas por terem pedido uma contrapartida para a autarquia para financiar um festival; vejo prisões para investigar em vez de investigações para prender; vejo, como antigamente, invasões de madrugada de casas, numa caça ao político que mais passou a parecer ser caça ao troféu apetecido por caçadores sem escrúpulos do que responsável atuação da justiça; vejo processos abertos durante anos, como os recentemente arquivados de três ministros, uma forma velada de ameaça; vejo o bom nome de muita gente ser enlameado na praça pública, e o representante sindical não querer perceber, no seu texto “A justiça vista do avesso” que é exatamente isso que acontece a quem é vítima do milésimo crime de violação do segredo de justiça, que o eficiente MP por acaso nunca descobre, e é condenado na praça pública, muitas vezes sem sequer ter sido ouvido no inquérito.

E como a procuradora Maria José Fernandes, pergunto: como chegámos aqui?

Onde estão os que deram o corpo ao manifesto para que isto não voltasse a acontecer? Onde estão os dirigentes políticos que se calam quando o que é da justiça passou a ser a política, ou quando a ética passou a ser apenas o limite da legalidade?

Onde está Montenegro, do PSD, que, em vez de honrar o legado de Rui Rio, que há muito reclamava pela reforma da Justiça (que Costa rejeitou repetidamente), optou pelo legado de alguém de pose hirta e ideias banais?

Onde estão no PS os candidatos que louvaram o trabalho de António Costa, mas esqueceram-se de sublinhar que nada fez para melhorar a Justiça?

Onde estão, mais à esquerda, os herdeiros ingratos de um Carlos Brito que penou no forte de Peniche, e que mais parecem empenhados na defesa de uma tática do que na defesa dos princípios?

Vamos esperar que a procuradora adjunta, tal como eu fui noutros tempos, seja despromovida a “soldado raso”?

Não percebemos ainda que o sinal dado a todos os gestores da coisa pública que ser proactivo na defesa de novas iniciativas pode agora ser considerado como tentativa de obter vantagem indevida, ou favorecimento ilícito de alguém, ou de interferência de funções, ainda que sejam as do mais quadrado burocrata?

E que sem ninguém a tentar desbloquear a papelândia onde vivemos tudo vai ser pior?

Que a independência do MP não se pode confundir com impunidade?

Que toda a gente tem de respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos e não pensar que se podem lavar em tribunal depois de enxovalhados por atropelos ao segredo de justiça?

Que um inquérito que ao fim de um tempo razoável não encontrar indícios fortes não pode ser prolongado sine die?

Que a investigação por arrastão, isto é iniciada sem fundamento, e depois continuada a tentar encontrar alguma coisa era o processo usado pela Inquisição?

Que os deputados têm mesmo de assumir urgentemente as suas responsabilidades e refazer o Conselho Superior do Ministério Público com gente respeitável de várias proveniências indicadas por outras instituições, que não sejam as controladas pelos partidos, em maioria no conselho?

E que é preciso pedir contas a uma instituição com o enorme poder de arquivar inquéritos, quando nada encontra em matérias em que até a comunicação social já identificou indícios fortes de ilegalidade?

Não, não quero que o meu país seja uma coutada onde obscuros caçadores disparam contra os alvos que lhes apetece, falham discretamente quando isso é conveniente e consideram-se acima de tudo e de todos, porque alguém lhes disse que eram donos da coutada.

E termino como comecei, citando novamente o editorial do PÚBLICO: Um dia, quando olharmos para trás e nos perguntarmos como, de uma forma geral, “chegámos aqui”, veremos que aqueles que apostam em hiperbolizar as falhas da democracia e dos seus actores para desacreditar o sistema, andaram às cavalitas de quem acha que não há nada para criticar na forma como o MP tem agido, só para aplaudir cegamente. São aqueles que não gostaram da palavra livre da procuradora adjunta.“

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