Colonialismo, genocídio e Shoá

De acordo com a crítica pós-colonial, a atenção dada à Shoá no mundo ocidental deveria agora abrir “espaço” para o estudo outros genocídios até agora negligenciados, nomeadamente coloniais.

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Nos últimos anos, o activismo político e a Academia têm-se juntado naquilo a que eu chamo postura identitária de “esquerda”. O conflito geracional também é convocado e há até quem apele ao combate dos millenials contra o genocídio em Gaza, contra a suposta passividade dos babyboomers face a este e outros genocídios, presume-se que face ao Holocausto (Shoá). Na Europa, esta geração foi a que criticou o autoritarismo e iniciou o combate contra o racismo e o sexismo e, em particular, na Alemanha questionou os seus pais sobre a sua atitude durante o regime nazi.

Na investigação histórica, como nas ciências sociais e humanas em geral, também ligada a essa narrativa política atual, sucedem-se os estudos de género ou pós-coloniais, uma parte dos quais inflectiu para interpretações que desvalorizam a investigação até hoje feita sobre o nazismo e a Shoá. Acusam-na de ter ofuscado e até ocultado outra narrativa sombria da Europa, nomeadamente a história do colonialismo. Esta interpretação coloca a Shoá numa linha de continuidade com os crimes da era colonial prussiana, em particular com o massacre dos herero no então Sudoeste Alemão da África, perpetrado pelo general prussiano Lothar von Trotha, entre 1904 e 1908.

Ao estudar o tema, o historiador Jürgen Zimmerer concluiu que a propensão para exterminar certos grupos de populações teria representado uma transgressão de um tabu sem precedentes, cujo resultado foi o primeiro genocídio do século XX e assumiu, depois a sua forma mais radical durante o Holocausto. Esta linha de investigação pós-colonial revisita Hannah Arendt, que, no livro Origens do Totalitarismo (1951) traçou as raízes do nazismo na longa história imperialista e colonialista da Europa.

De acordo com a crítica pós-colonial, a atenção dada à Shoá nas últimas três décadas na Alemanha e no mundo ocidental deveria agora abrir “espaço” para o estudo outros genocídios até agora negligenciados, nomeadamente coloniais. Um dos principais arautos dos estudos pós-coloniais é o australiano Dirk A. Moses, que, num artigo de 23 de Maio de 2021, apelidou de novo catecismo alemão a distinção entre o colonialismo e a Shoá, que ele definiu como um crime entre outros, sem singularidade.

É certo que, por vezes, a insistência na singularidade da Shoá pode estar próxima da indesejável sacralização do tema. Enquanto historiadora, eu utilizo o instrumento da comparação, também no estudo da Shoá, apesar de reconhecer a sua singularidade. Mais do que o adjectivo singular, há quem prefira usar o de específico, para caracterizar o carácter único da Shoá no interior de uma categoria de crimes de genocídio. A Shoá é hoje definida como um genocídio e até como o paradigma dessa categoria de crimes.

Funciona como referência para outros genocídios como são os casos anteriores dos herero pela Alemanha colonial e dos arménios pelo império otomano e, através de um exame rigoroso dos factos, o conceito foi estendido ao genocídio dos tutsis no Ruanda. Para se comparar a Shoá com outros genocídios, deve-se começar por definir o que é esse tipo de crime, alcunhado pelo judeu polaco Raphael Lemkin, em Novembro de 1944, para definir o acto de destruição intencional de grupos nacionais com base na sua identidade colectiva.

A tese da continuidade entre a “violência colonial” alemã e a Shoá foi criticada por aqueles que realçam o facto de as particularidades do colonialismo prussiano não residirem tanto na repressão violenta das revoltas indígenas – a Alemanha prussiana não se distinguiu de outras potências coloniais europeias –, mas no facto de ele ter tido um fim abrupto em 1918. O tratado de Versalhes fez então da Alemanha uma potência pós-colonial e esse ano que remete para o fim da Grande Guerra. Esta, a par da experiência da derrota, da revolução e da guerra civil foram de importância capital para explicar a propensão para o uso da violência na Alemanha e marcou a geração de alemães depois presentes no genocídio nazi.

Os membros da geração que dominou as instituições de extermínio nazis, nomeadamente da SS, foi analisada por Michael Wildt, segundo o qual, nascido por volta de 1900, viveram a derrota alemã do pós-guerra, na retaguarda, e foram marcados, na idade de 20 a 30 anos, pela crise política e financeira de 1923, na Alemanha. Uma das objecções à tese da continuidade é a ausência desta entre os perpetradores da Shoá e os militares coloniais prussianos de 1904, nascidos nas últimas décadas do século XIX.

A tese da continuidade pós-colonial acusa os estudos até agora realizados sobre a Shoá de sofrerem de eurocentrismo e de “privilégio branco”, por isso se torna importante comparar o caso alemão de 1904 a 1908 com outras experiências coloniais europeias anteriores e coevas. Na conquista e colonização americana das Filipinas, entre 1898 e 1902, houve ordens militares equivalentes à ordem de extermínio (vernichtung befehl), de Lothar von Trotha de 1904, que resultaram na morte de 20.000 soldados filipinos e entre 250.000 e 750.000 civis.

Também o universo concentracionário, usado pela Alemanha prussiana contra os herero e nama e depois tão utilizado – e aperfeiçoado – pelo regime nazi, nasceu anteriormente. Na Guerra Hispano-Cubana entre 1895 e 1898, o general espanhol Valeriano Weyler iniciou um programa de reconcentração da população rural, que serviria de modelo à concentração levado a cabo pelo britânico Lord Kitchener durante a Segunda Guerra dos Bóeres na África do Sul (1899-1902).

Mas o objectivo de concentrar seres humanos foi o de impedir a guerrilha contra o colonizador, e não o extermínio. Colonialismo não é sinónimo de genocídio. O filósofo Jürgen Habermas realçou que uma das diferenças entre a violência colonial e a Shoá se prendeu com a mudança no combate dos nazis, já não contra o outro, estrangeiro ou colonial, mas contra o inimigo interno judeu. Aliás as leis racistas de Nuremberga de 1935 não se basearam em quaisquer percursos coloniais e atingiram “apenas” a “raça” judaica.

A questão do trabalho forçado de judeus a Leste é também usada como um dos argumentos da comparação pós-colonial, mas, como mostrou Saul Friedländer a força laboral escrava não foi só utilizado pelos nazis como método económico para enriquecer a SS, pois constituiu também um dos métodos de assassinato. Tanto assim foi que, na conferência de Wannsee, de Janeiro de 1942, o dirigente SS Reinhard Heydrich esclareceu que uma das formas de tratar a solução final era a utilização de trabalho forçado de judeus até à morte, para desde logo diminuir o seu número. O mesmo historiador lamenta que os estudos pós-coloniais separem a luta anti-racista do combate ao anti-semitismo, outrora ligados.

Enquanto cidadã de uma geração que, em parte, combateu a ditadura, a guerra colonial, o colonialismo e o racismo, expresso o mesmo lamento. Enquanto historiadora, penso que afirmar a especificidade da Shoá não elimina a necessidade do estudo comparativo com outros genocídios. O estudo sobre o colonialismo e a guerra colonial, que tarda em Portugal, não entra em concorrência com quaisquer investigações sobre outros genocídios; complementa-as, permitindo detectar as diferenças entre os diversos processos de violência.

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