Deixem os adolescentes brincar!

Porque é que não temos parques com obstáculos, desafios, escorregas, cordas para os nossos adolescentes? Porque é que já não podem ir mascarados para a escola no Halloween ou no Carnaval?

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EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Querida Mãe,

É hora de almoço, e estou sentada num banco de um parque infantil, e vejo vários adolescentes sentados a comer: uns nos baloiços, outros na parte de cima do escorrega. Um deles sobe e desce enquanto conversa.

Fico a olhar para eles e a pensar em quão mal, nós, como sociedade, tratamos os nossos adolescentes. As suas netas mais velhas este ano ficaram muito tristes porque no Pão por Deus, às portas em que batiam lhes diziam que já “não tinham idade” para receber. No “liceu” (para a mãe saber ao que me refiro!), não podem brincar no parque infantil dos mais pequenos, mesmo quando está vazio, porque “é só para os mais pequeninos”, e os recreios dos maiores, quando existem, são tantas vezes espaços vazios e inóspitos.

Pois é, queixamo-nos de que já não sabem brincar, mas nunca lhes oferecemos oportunidades para isso. Tratamos a brincadeira como se fosse uma coisa de “crianças”, quando está mais do que provado cientificamente que esta faixa etária precisa, para o seu bom desenvolvimento, de desafios, de algum risco, de movimento, de interacção com os pares, de alguma competição (principalmente a que é criada pelos próprios). Mas, afinal, onde é que os nossos adolescentes podem explorar tudo isto?

Queremos que não estejam sempre nos telemóveis, que não procurem riscos desnecessários e verdadeiramente perigosos, que sejam autónomos. Mas como? Como é que treinam a autonomia se, a todos os minutos do dia, são supervisionados e orientados — seja na escola, no ATL ou nas actividades extra que têm seguramente muitos benefícios, mas não deixam de ser estruturadas e orientadas.

Como é que aprendem a sentirem-se bem nos seus corpos e como é que desenvolvem músculos, flexibilidade e defendem a coluna vertebral — dobrada pelo peso ridículo das mochilas — se não têm parques, pedras, árvores, para se desafiarem?

Mãe, porque é que não temos parques com obstáculos, desafios, escorregas, cordas para os nossos adolescentes? Porque é que já não podem ir mascarados para a escola no Halloween ou no Carnaval? Porque é que lhes reviram os olhos quando, numa loja, estão cinco miúdas a rir? Onde está a nossa tolerância para a exuberância deles, para a espontaneidade, e sim, para os tiques irritantes, que também têm, e que sim, são necessários para construírem a sua identidade e sentimento de pertença?

Se despirmos a nossa capa de velhos do Restelo, vamos sentir por eles, por tudo isto, uma enorme ternura e, se não tivermos perdido a memória, reconhecer neles a nossa própria adolescência.

Mas, mãe, vamos fazer uma birra por mais espaços e mais tolerância para os adolescentes?


Querida Ana,

Que sorte têm os adolescentes quando, na sua vida, se cruzam com adultos que não perderam a memória, ou que não andam mergulhados numa nostalgia de um passado que nunca verdadeiramente existiu, onde — dizem — imperava “a boa educação e o respeito”, que supostamente se perdeu.

Mas não são só eles que ficam a ganhar quando os adultos despem, como dizes, a capa de velhos de Restelo, são os próprios “crescidos” que rejuvenescem imediatamente, como se a fada Sininho os tivesse polvilhado com pó de voar. E sabes como é que sei? Porque corresponde, fundamentalmente, à experiência de ser avó.

Nem imaginas a adrenalina que sinto quando, aos sessenta e picos anos, redescubro o prazer de subir a uma árvore com eles, de me sentar num baloiço e dar velocidade com as pernas, de ir a cantar no carro a muitas vozes, de transformar um quarto num dormitório de colégio interno e ficarmos a falar até às tantas da manhã, de fazer uma incursão a meio da noite à cozinha, de fingir que sou cartomante e ler-lhes nas cartas quantos namorados vão ter... Da felicidade que sinto só de, no quarto ao lado, ouvir as gargalhadas e os teatros do bando de adolescentes que convidaram para dormir também cá em casa.

Mas, confesso, sinto uma tolerância bem menor quando invadem uma sala de cinema e fazem uma barulheira que me impede de ver o filme, mesmo compreendendo que naquela idade o que importa é estarem juntos, ou quando rompem com os limites de “parvoeira”… Mas, espera, perdi o foco da tua birra.

Tem calma, já volto a ele: os áridos ou inexistentes recreios, em contradição absoluta com os índices de obesidade, de ansiedade, de falta de exercício, e os sermões sobre os malefícios do vício dos telemóveis. Acima de tudo, a interdição da brincadeira, como se a partir de certa idade, nos tivéssemos de tornar sedentários espectadores de bancada, sisudos e contidos, para sermos consideradas pessoas respeitáveis.

Mas essa “lição” temos de a dar aos próprios adolescentes, sossegando o dilema que imaginam insolúvel: o desejo de crescer versus o medo de perder as coisas boas da infância. É preciso que acreditem que não é a brincadeira, não são os baloiços e os escorregas, as máscaras de Carnaval ou o Pão por Deus que vão impedir que os outros (nomeadamente os pares) os levem a sério, como tanto querem. E isso passa exactamente pela tua proposta: vamos lá engolir os comentários cretinos e criar “parques para adolescentes”. Achas que também lá posso ir?


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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