Não te atrases para o Natal

A minha definição de família: pessoas com quem gosto de estar e a quem entrego o meu tempo, atenção e amor e das quais recebo tempo, atenção e amor.

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"O nosso mundo é aquilo a que damos atenção e em que ocupamos o nosso tempo" Craig Adderley/pexels
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“O passado não existe. O futuro ainda não começou. O presente é um ponto infinitamente pequeno no tempo, no qual o passado já inexistente encontra o futuro iminente. Neste ponto, que é intemporal, existe a vida real de uma pessoa.”
O Calendário da Sabedoria, Lev Tolstoi

Este é o nosso tempo. Este! No exato instante em que lê estas palavras, elas são o meu tempo que lhe entrego. Passado para mim, presente para si. Ausência e presença. Desencontro e encontro. A dicotomia faz-me pensar no tempo, na efemeridade da vida e na minha ferrenha convicção de que é tão pouco o tempo oferecido a cada um de nós que devemos valorizar a preciosidade dos instantes que entregamos uns aos outros. “A vida é a arte do encontro”, entregou-nos Vinícius de Moraes. E esta frase, curta e simples, é um tratado sobre significado.

Encontro, ligação, família.

“A família está em primeiro lugar.” Qual família? A biológica, ou seja, aquela no seio da qual nascemos? Ou a família que escolhemos, resultante das relações de amizade, parceria ou adoção, com base em afinidades emocionais e afetivas? Ambas? A minha definição de família: pessoas com quem gosto de estar e a quem entrego o meu tempo, atenção e amor e das quais recebo tempo, atenção e amor. Ou “A vida é a arte do encontro” entre pessoas que se significam.

O nosso mundo é aquilo a que damos atenção e em que ocupamos o nosso tempo. O resto é um vazio. Sem atenção, sem repararmos, sem nos entregarmos, nada significa. É a entrega plena aos encontros humanos que os torna significativos. Eis a família. A árvore genealógica é um grafismo, um registo histórico onde de vez em quando se inscreve mais um rebento. Quantas pessoas — pergunta dura! — simplesmente suportam os seus “familiares”, sejam de sangue ou escolhidos (e que entretanto perderam significado; é dinâmica, a vida)? Aproxima-se o Natal, época de tantos encontros forçados. Reflita nesta frase: o Natal é (também) a arte do frete.

Na noite passada, sonhei que tinha perdido o meu relógio de pulso. Senti-me tão angustiado que fui pesquisar na Internet uma interpretação possível para o sonho (pesadelo). Entre inúmeros significados obscuros que encontrei em sites mais ou menos duvidosos sobre a (incerta?) ciência de interpretação dos sonhos, sobressaiu uma interpretação comum que me agradou: sonhar que se perdeu um relógio de pulso pode significar que está a desperdiçar tempo em coisas sem significado e que deve priorizar o que é importante para si e aproveitar melhor o seu tempo. Não sou esotérico, mas fez-me sentido.

No meio da pressa que ninguém percebe muito bem por que tem — tenho feito a pergunta “tens pressa para quê?” a muitos que vejo apressados e a resposta que recebo é, invariavelmente, “não sei” —, é fácil adiar os momentos significativos, os abraços esperados e as palavras não ditas.

“O Natal é quando um homem quiser”, justificamos quando fazemos determinada coisa fora de época. Comer fatias-douradas em agosto, por exemplo. Ora, sendo o Natal comummente entendido como época de encontro, celebração e convívio de familiares (biológicos e escolhidos), entendo o lugar-comum que atrás citei da seguinte forma: cada ser humano deve escolher com quem compartilha alegria, generosidade e amor, bem como o momento em que o faz. As suas escolhas, os seus momentos, não as pessoas e as datas impostas. É ou não um disparate passar tempo com quem não significa mais do que uma ramificação na árvore genealógica? Por outro lado: por que esperar pelo Natal para o encontro com quem se gosta? Adiamos encontros, atenção, entrega, momentos, significado. Porquê? “Sei lá”, respondemos.

Perguntas difíceis e de resposta demorada. Estamos sempre à espera... À espera do outro, do momento certo, das perguntas certas, das respostas certas, à espera, ensaiando o Natal e os sorrisos e os abraços sinceros. E se o Natal não esperar pelas respostas, pelos sorrisos e pelos abraços? E se o meu tempo não encontrar o tempo do outro? “Às vezes, as nossas ações são perguntas, não respostas”, decretou John Le Carré. Isso. Pelo sim, pelo não, celebro o Natal hoje. Com a família, pois claro.

“Onde quer que tu e eu estejamos é aqui
Onde quer que aqui seja
Mas onde quer que seja
Não permitamos que seja em qualquer outra parte”
Gramática da Vida, David Cooper


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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