O complexo de Judas
A Igreja tem feito um caminho importante e, quero acreditar, sincero, para expiar os seus pecados. Esse caminho não impede, no entanto, que se olhe para trás e se pergunte pela razão do encobrimento.
Crime e pecado não se confundem. Podem coincidir esporadicamente, mas não se confundem. Pertencem a foros e a jurisdições diferentes, um a César e o outro a Deus, ou, para quem, como eu, só está certo da existência do primeiro, um ao Estado e o outro à Igreja. Reconhecer esta diferença implica perceber as limitações da intervenção canónica, e saber que há atos que têm de ser investigados e julgados pelas autoridades civis, independentemente da confiança que se deposite na justiça eclesiástica (ou até, para os crentes, na divina).
Durante anos, a Igreja, em diferentes graus da sua hierarquia, chamou a si o monopólio da gestão do pecado e ofereceu o perdão que não era seu para dar a quem, no seu seio, abusou sexualmente de crianças. E entre omissões de denúncia ou práticas de encobrimento ativo, como a transferência para outras paróquias de clérigos sobre quem recaíam suspeitas graves – paróquias onde os pecadores puderam beneficiar da insuspeição das suas futuras vítimas –, a Igreja permitiu que esses pecados, que eram crimes de direito comum, acumulassem vítimas em número e em tempo.
Os números desses crimes são ainda incertos, e sê-lo-ão sempre, tal como os do encobrimento pela Igreja, mas não é demais destacar, nem que seja para se perceber que não são casos isolados, que só nas investigações realizadas em França, na Austrália, em Colónia (Alemanha), na Irlanda e em Portugal, contam-se já um quarto de milhão de denúncias.
Por entre reconhecimentos de “falhas de liderança” e de “abusos e erros”, pedidos de desculpa, a criação de comissões independentes para investigação de décadas de abusos sexuais e também de grupos mais focados no presente e no futuro, como o Vita, que tenho o privilégio de integrar, a Igreja tem feito um caminho importante e, quero acreditar, sincero, para expiar os seus pecados.
Esse caminho não impede, no entanto, que se olhe para trás e se pergunte pela razão do encobrimento. Há quem diga, em parte com verdade, embora sem razão, que, na perspetiva da Igreja (que pode ser ou não diferente da perspetiva de quem a integra), o encobrimento é a resposta natural para preservar uma reputação de que depende a salvação das almas da Humanidade; que o risco do escândalo, por contraposição à ideia de que o ato encoberto é já facto consumado, é o que leva a tentar resolver internamente o que aconteceu dentro de portas, extinguindo o mal menor para evitar o mal maior.
Embora as razões não sejam totalmente conhecidas, não é difícil intuir que em parte o encobrimento se deve a uma conjugação deste medo do escândalo, com a ideia, obviamente errada, mas transversal a várias instituições, de que denunciar os membros da Igreja é, ou assim pode ser lido, trair a própria Igreja.
Esse erro de julgamento, que, ele sim, trai a mensagem de verdade, perdão e penitência que a Igreja pretende passar – e até a própria Igreja, composta pelos crentes e não (apenas) por quem se apresenta com crucifixo ao peito ou cabeção ao pescoço –, estará, espera-se, definitivamente ultrapassado.
No entanto, se, como parece resultar do seu caminho recente, a real intenção da Igreja é de substituição da cultura de encobrimento por uma cultura de intolerância com abusos sexuais, então é necessário dar passos concretos. E esses passos são fáceis de identificar: é necessário que se criem canais de denúncia em todas as instituições religiosas; é necessário que esses canais sejam seguros e conduzam às instâncias certas civis e canónicas; é necessário repensar o regime do segredo confessional, quebrando-o pelo menos em casos de crimes em curso ou futuros; é necessário criar regras para evitar que padres e crianças estejam isolados; é necessário que se ensinem as crianças a saber o que são contactos inadmissíveis e os segredos que não são para guardar; no fundo, é necessário um regresso às origens, percebendo-se que “nada há de escondido que não será revelado; e nada há de secreto que não será conhecido”.