Um pastor luterano e uma professora entram num autocarro… e é amor, café e Natal

Ele era pastor luterano, teve um burnout e fez de um autocarro a sua casa. Ela, professora, entrou no bus para um café e apaixonou-se. Agora viajam juntos e servem chocolate e vinho quente.

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Michel e Helene e o seu Doppellecker estão, neste momento, em Esmoriz Alexandra Couto
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Michel e Helene e o seu Doppellecker estão, neste momento, em Esmoriz Alexandra Couto
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Isto tem de ser rápido, que a história é bonita, mas o autocarro não pára. Veio da Alemanha até Santiago de Compostela, depois guinou para Vila Nova de Cerveira e daí desceu até Esmoriz, no concelho de Ovar, onde uma lojista local o descobriu e, achando pecaminoso que tão giro bus só lá ficasse um dia, tratou de lhe assegurar poiso até domingo, 26, na marginal da praia, para mais gente beneficiar do espírito de “amor, paz e café” do Doppellecker – nome que joga com as expressões alemãs quase homógrafas e homófonas para “duplo deck” e “duplamente delicioso”.

Com vista para o mar crispado e para uma namoradeira ripada, o autocarro azul e branco, com luzinhas de Natal por fora e uma esplanadinha amovível, é literalmente a casa dos alemães Michel Malcin e Helene Volkensfeld, que com ele mudaram de vida e agora têm como única missão “ser felizes”. Porque é que se lançaram nesta aventura, deixando confortos convencionais para trás e vivendo apenas das bebidas que servem no autocarro e alguns donativos? Porque um e outro tiveram esgotamentos psicológicos e decidiram que queriam mais alegria da vida.

Vamos então à corrida. Estava-se em 2018 e Michel mantinha-se casado, com três filhos. Todos os dias ajudava pessoas na sua congregação luterana, passava horas a dar conselhos aos outros e a certa altura achou que era de mais. “Tive um burnout, percebi que não aguentava mais aquilo. E como sempre gostei da estrada, de ser anfitrião, de servir, de conhecer pessoas e lugares, tratei de seguir o conselho que dava aos outros e tentar ser mais feliz eu também, todos os dias”, conta ele, agora com 43 anos. “Ainda pensei abrir uma loja de gelados, mas não me via satisfeito nisso mais do que três meses e então decidi comprar este autocarro e transformei-o todo para me servir de casa e café em movimento.”

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O autocarro de dois andares é de 1959 e durante décadas transportou passageiros pelas ruas de Berlim Alexandra Couto

A remodelação ocupou-o até finais de 2019, “quando deixou de haver dinheiro para mais arranjos”, e logo depois o sonho também parecia travado pelas imposições da covid, que impedia a entrada de clientes no autocarro, mas Michel foi servindo cafés à porta, sempre perto de casa, até que em 2022 o casamento ficou para trás, ele mudou o resto das suas trouxas para o bus e soltou finalmente o travão, lançando-se em pleno à estrada. Os filhos de dez, 14 e 17 anos acompanham-no em certas viagens, mas no autocarro cabem pelo menos 40 pessoas, dentro e fora. A máquina de 1959 que durante décadas transportou passageiros pelas ruas de Berlim exibe-se agora bem mais cómoda, com bancos de estofo vermelho dispostos frente a frente, muitas molduras nas paredes, candeeiros e caixas de música nas mesas e janelas, e louças coloridas que vão diminuindo de tamanho para se ajustar ao gosto dos clientes, que, de França até Portugal, querem o café cada vez mais pequeno e a dose de açúcar cada vez maior.

É tudo tão giro, apelativo e acolhedor que Helene confessa: “Entrei no autocarro e nunca mais saí.” Esta professora primária também estava cansada, com sinais de esgotamento, e, antes de se comprometer com mais quatro anos de escolaridade completos, percebeu que precisava de algo diferente. “E então o Michel apareceu com o bus”, diz ela. “Primeiro apaixonei-me pelo autocarro e depois por ele.” Como sempre idealizou trabalhar num café, começou a ajudá-lo na cozinha, foram conversando, encontraram-se noutras cidades e, a certa altura, já com o romance em velocidade de cruzeiro, também ela subiu para o Doppellecker. “Pedi um ano de licença no trabalho, renovável, e arrendei o meu apartamento, para poder ter seguro na viagem. O que servimos não dá para pagar tudo, mas a experiência vale o esforço e está a ser inesquecível este contacto com as pessoas, com os locais que descobrimos no caminho.”

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Sempre a bulir entre a máquina de café, os frigoríficos e os armários de louça, Michel e Helene não se enervam com o aperto nem com a desarrumação “de uma casa normal”, como o autocarro é para ambos, e, circulando pelos dois decks do bus, trabalham e conversam com quem souber inglês ou alemão. Quando o corpo já não aguenta, recolhem as mesinhas da esplanada, ligam o gerador para o caso de os painéis solares serem insuficientes, fecham a porta e as janelas do autocarro, limpam tudo, tratam da sua ceia e depois ocupam então um quartinho discreto na frente do deck superior. É de manhã que mais passeiam, quando saem para compras de mercearia e deixam o altivo Doppellecker num enquadramento bonito, que faz parar gente curiosa sempre sedenta de fotografias.

“Não está tudo perfeito, mas isso dá mais carácter ao autocarro”, diz Michel. E, no fundo, até está tudo como devia. Porque ele lembra-se com tristeza dos cafés alemães, onde observava tantas pessoas sentadas em silêncio, muitas vezes a ignorarem quem as acompanha na própria mesa, focando-se apenas no ecrã dos telemóveis. “Aqui, todos acabam a falar com os outros, a rir-se em conjunto, a fazer pose para outros os fotografarem – o espaço é tão pequeno que não têm alternativa.” Quem o ouve sorri e acena que sim, precisamente para o estranho do lado. Entre cappuccinos, chocolate quente e vinho aquecido com anis e canela, há apertos de autocarro que sabem bem.

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