A Europa e o pensamento único

Os debates podem ser interessantes, mas não se ambas as partes disserem a mesma coisa, ainda que se apresentem sob bandeiras diferentes.

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A História da Europa inclui episódios de grande relevo, incluindo o desenvolvimento das ciências, das artes e da cultura. Lamentavelmente, a Europa registou ao longo dos séculos momentos de assinalável falta de tolerância para com pensamentos diferentes dos pensamentos dominantes em cada determinado momento.

Na sequência do final do conflito de 1945, e mais tarde na sequência da queda do Muro de Berlim, em 1989, um grande número de países europeus adotou um regime político caracterizado, entre outros aspetos, pela defesa da liberdade de expressão, embora, em alguns casos, com limites formais. A interpretação europeia do conceito não é exatamente a mesma que a que existe do outro lado do oceano Atlântico, sendo que, desse outro lado, o conceito é visto como quase absoluto.

No século XX, o advento da televisão e das restantes tecnologias de informação veio facilitar a transmissão, junto do público, de mensagens direcionadas no sentido que os poderes políticos em cada ocasião pretendiam. A sucessão de eventos (espontâneos ou não) capazes de atrair a atenção do público, depois de noticiados, permitiu preencher, em larga medida, a agenda mediática.

Na Europa, o século XXI tem vindo a testemunhar uma infeliz tendência para a manutenção da situação do final do século anterior, registando-se uma forte insistência no pensamento de sentido único, em relação a matérias consideradas importantes e sensíveis. Os assuntos predominantes escolhidos, os quais se sucedem ao longo do tempo, ocupam grande parte do tempo mediático. O mais preocupante, contudo, é o sentido único na opinião que é apresentada, a qual frequentemente se encontra em bom alinhamento com o setor noticioso. Tal como, nas lojas, a prateleira na qual se encontra o produto influencia as vendas, também no mundo mediático o momento e o enquadramento da notícia pode alterar o respetivo impacto.

Os debates podem ser interessantes, mas não se ambas as partes disserem a mesma coisa, ainda que se apresentem sob bandeiras diferentes. Nessas condições, e sem prejuízo da sinceridade e da honestidade intelectual dos eventuais intervenientes, o uso da palavra arrisca-se a ser confundido com propaganda.

Entraram, entretanto, em uso corrente palavras cuja utilização permite categorizar algo como pouco recomendável. Uma dessa palavras é “populista”. Essa palavra significa originalmente “adepto do povo” ou algo semelhante, mas é utilizada no sentido de implicar a presença de “demagogia”. Na verdade, ambas as palavras, independentemente da origem latina ou grega, implicam que o “populus” pode ser, de alguma forma, enganado pelo/a populista, de forma a aceitar algo que lhe é inconveniente. Trata-se, portanto, de uma posição de desconfiança em relação ao método que defende que o poder deve ser exercido em conformidade com a opinião das pessoas – o qual constitui a base do sistema democrático. Para o/a extremista, ser apelidado de “populista” pode ser favorável, uma vez que isso permite sinalizar, junto do seu público-alvo, que o “sistema” o/a rejeita, de igual forma que ele/ela rejeita o mesmo “sistema”.

Nos EUA (desde há muito tempo, uma fonte primordial de desenvolvimento científico e tecnológico do planeta) a situação é diferente. Sem prejuízo da existência de múltiplas opiniões no espaço público, muitas das quais o autor não poderia apoiar, o espetro político encontra-se dividido em dois campos principais, não existindo interesse na respetiva convergência. A divergência de opiniões associou-se ao aparecimento, em cada um dos campos, de posições menos moderadas. Naquele país, é motivo de preocupação a evolução de tentativas de impor o unanimismo, designadamente no meio académico. É de notar que algumas tendências já atravessaram o oceano Atlântico, e vão transmitindo sinais continuamente através dos produtos culturais produzidos naquele país e consumidos na Europa.

Na Europa, a tentativa de progressiva unificação do pensamento gerou já uma consequência, o “Brexit”, com prejuízo para ambos os lados do canal.

Tal como notou Sunstein (em Why Societies Need Dissent, 2005), existe, em cada sociedade, uma maioria de pessoas conformistas, pelo que a situação acima descrita na Europa pode tender a gerar cada vez mais conformismo. O conformismo, em algumas circunstâncias, alimenta-se a si próprio. Poderá contrapor-se que a experiência no então mundo soviético mostra que, não obstante a existência de um forte controlo da comunicação social, as opiniões contrárias encontraram forma de se expandir.

As pessoas que se dedicam a promover o pensamento único parecem acreditar que o resultado agregado dessas duas tendências (conformismo, contracultura) é favorável à primeira, ou seja, ao conformismo (de outra forma, não fariam esforços nesse sentido). Tudo indica que algumas dessas pessoas são muito talentosas e que dispõem de meios consideráveis.

O resultado do processo a que temos vindo a assistir na Europa não é necessariamente favorável a médio e a longo prazo, uma vez que estamos a falar de países com escrutínio eleitoral direto e universal. Os já aludidos “populistas” ou extremistas de diversa índole, podem encontrar na rejeição do “pensamento único” o combustível necessário para incendiar uma qualquer sociedade, colhendo os seus frutos no segredo das urnas.

Estaremos agora pior do que em tempos mais antigos? Provavelmente não, se compararmos com a Idade Média ou com as monarquias absolutistas. Mais recentemente, durante a “guerra fria”, Marcuse escrevia que “a liberdade intelectual significaria a restauração do pensamento individual agora absorvido pela comunicação de massa e pela doutrinação, a abolição da "opinião pública" juntamente com os seus criadores” (One-Dimensional Man, 1964, capítulo 1). Estamos, portanto, em face de algo que tem acompanhado a sociedade industrial e tecnológica, sendo que muitos decisores políticos podem alegar, justamente, que a situação já estava criada quando chegaram ao poder.

Em conclusão, ainda que possamos ter grande simpatia por algumas ou até por todas as teses do “pensamento único”, é importante compreender a importância do verdadeiro confronto de opiniões e de pontos de vista numa sociedade democrática. No contexto da democracia liberal, que o autor defende, devemos exigir um verdadeiro debate, no qual possamos ouvir opiniões contrárias, e devemos exercer um constante esforço de tolerância para quem não pensa como nós.

Posfácio - O advento, no final do ano 2023, de um novo e lamentável conflito envolvendo Israel, veio transfigurar o panorama acima descrito. A capacidade para o mal de que o ser humano é capaz foi, mais uma vez, colocada em evidência. Embora possamos gostar das ideias de Rousseau, nunca se passa muito tempo sem que Hobbes clame por vitória. O debate em defesa de cada uma das partes teve lugar em toda a Europa, muito embora em partes do continente se tenham observado tentativas de impor o pensamento único. Teme-se que regresse o pensamento de sentido único, mal este terrível conflito termine.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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