Da necessidade de um sobressalto ético

Entre os partidos políticos, especialmente ao PS devemos exigir uma reflexão sobre o facto de os seus dois últimos primeiros-ministros estarem como estão perante a opinião pública.

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Daqui a a poucos meses cumprem-se 50 anos sobre a revolução do 25 de abril; dirão muitos que falta cumprir os valores que a ela estavam subjacentes. Não me alongarei, porque aqui não é o lugar, no elencar do que não foi cumprido, mas hoje o sentimento de muitos concidadãos é o de desalento, de desilusão, de vontade de seguir por vias políticas que negam o fundamental das liberdades e garantias lançadas por essa revolução que em muito falta cumprir.

É claro que devemos, na mais clara honestidade intelectual, tomar constantemente consciência de que muito foi trilhado nestes 50 anos, e muito se avançou nos mais variados campos, seja nas liberdades, na educação, na saúde ou mesmo na economia. O Portugal de hoje está plenamente integrado no grupo dos países mais desenvolvidos (na cauda dele, mas estamos lá), ao passo que a 23 de abril de 1974 estávamos numa outra realidade, no “orgulhosamente sós” que nos tinha remetido para um guetto privado, sobretudo inculto, estruturalmente superpobre, subdesenvolvido e, culturalmente, rural.

Mas hoje o quadro político degradou-se a ponto de termos um significativo rol de políticos de altas funções implicados em processos de corrupção. É verdade que alguns nem são sequer indiciados, mas a suspeição tornou normal a ideia de que a corrupção é generalizada. Num mundo mediatizado, onde o “diz que disse” vale tanto quanto uma prova factual, o que nos interessa é o universo das representações e das percepções. Nesse mundo, aquele que efetivamente conduz os cidadãos a tomar determinadas opções políticas, a dedicação ao bem público, à Res Publica, parece ser apenas uma retórica que conduz a cargos que são usados para proveito próprio. Não será a norma, mas a percepção leva o cidadão para essa realidade comunicacional.

No sentido nobre, socrático, de interpretação da ética, ao cargo público deve equivaler uma exigência no comportamento e nas práticas que sirva de exemplo ao comum cidadão. À prática de uma vida pública, dedicada a causas comuns, deve corresponder um arcaboiço de valores que valorizem a vida em sociedade, os princípios que nos regem e que, assim, se tornam a norma. Uma ética prática, no campo da política, deve ser disseminadora do sentido de comunidade e de virtudes.

Ora, hoje o que temos é a desagregação desse sentido de comunidade. Cada um procura o seu sucesso à custa de atos que nem sempre são lícitos ou, pelo menos, não reprováveis. A sociedade olha para o quadro político e não vê o que de melhor a sociedade tem, mas sim o que de mais medíocre sai de dentro de nós.

E, nesse sentido, não há um “eles”, como tantas vezes se diz. Esse desculpabilizar através de um “eles”, que nos coloca aparentemente de fora, é uma falácia, porque todas as elites políticas são imagem da sociedade que as elege.

Todos temos de fazer um ato de introspeção para compreender o ponto a que chegámos. E nesse ato devem estar os pequenos gestos que cada um de nós faz e que, na mais corrente interpretação, são corrupção ou abuso de poder (todos os fazemos de forma estrutural, desde a cunha que pedimos, ao favor que fazemos).

Necessitamos de um sobressalto ético, que nos faça regressar a uma ética republicana em que seja honroso servir a causa pública. Indivíduos, mas também instituições, todos temos de parar para ver onde e como as coisas correram mal. Esse sobressalto deve levar-nos a parar para pensar, refletir, equacionar e exigir. Este sobressalto, que todos devemos ter, é caminho para a ação, para um assomo de ética republicana, centrada no comum, no humanístico, no fraterno.

Entre os partidos políticos, especialmente ao PS, peça tão fundamental na montagem da sociedade livre que hoje temos, devemos exigir que faça uma profunda e longa reflexão sobre o facto de os seus dois últimos primeiros-ministros estarem, perante a opinião pública, como estão: manchados pela ignomínia da suspeição. Alguma coisa correu muito mal no PS em termos de valores éticos.

Mas este sobressalto deve ter lugar também em cada um de nós. Em que medida somos servidores da coisa pública, ou não somos apenas mais um a tentar o seu lucro pessoal?

Precisamos de melhor. Temos de dar mais. Temos de exigir e praticar uma ética republicana.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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