Creio que não é preciso recapitular os principais acontecimentos do alucinado dia 7 de Novembro, quando projectos do lítio e do hidrogénio verde levaram à queda do governo. Vou, portanto, directa ao assunto: a atmosfera terrestre não está minimamente "preocupada" com turbulências políticas que possam haver nos países.

É certo que, no país com a maior reserva de lítio da Europa, uma nódoa caiu no pano da transição energética. Mas esta situação nacional, que pode implicar práticas políticas e ambientais graves, não muda uma verdade científica: os efeitos da crise climática já são visíveis e o caminho para atenuá-la continua a passar pela limitação de gases com efeito de estufa. Por outras palavras: temos de reduzir drasticamente o uso de combustíveis fósseis, electrificando sectores poluidores como os do transporte e da indústria.

Numa conversa com o Azul, o biólogo Jorge Palmeirim, presidente da Liga para a Protecção do Ambiente (LPN), disse algo que resume bem a importância de separar o caso português do desafio climático que temos – nós, humanidade – pela frente. 

"Nós todos nos sentimos, neste momento, desconfortáveis com aquilo que possa ter acontecido, ou seja, com o licenciamento de um projecto em que poderão não ter sido cumpridos todos os requisitos da avaliação ambiental. Imagino que o cidadão também se sinta assim. Mas as mensagens sobre a necessidade de combater as alterações climáticas continuam a ser verdadeiras", sublinhou Jorge Palmeirim.

"É muito importante comunicar isso. Isto é um acidente de percurso", acrescentou o biólogo, para quem é crucial não esquecer que, até ao fim do processo, devemos presumir a inocência dos envolvidos.

As suspeitas que pairam actualmente sobre projectos que, em tese, ajudam a pavimentar o caminho para a acção climática, só mostram como é acidentado o caminho a trilhar. A transição energética está a ser desenhada e levada a cabo por humanos, o que significa que está contaminada pela nossa imperfeição. É absolutamente necessária, mas traz consigo tensões e injustiças. Um exemplo: uma parte da população de Boticas opõe-se ao projecto de exploração da mina do Barroso, temendo efeitos negativos como a degradação da água e da paisagem. Estes problemas, contudo, não alteram a urgência global de pararmos de queimar petróleo, carvão e gás.

Mais uma vez, Jorge Palmeirim condensa bem a complexidade desta empreitada. "Tanto o hidrogénio como a electrificação do parque automóvel constituem um passo importante nesse sentido. Isto não quer dizer que os processos que são encontrados para a obtenção do lítio sejam sempre correctos. Uma coisa é ser importante ter lítio, outra coisa é garantir que o lítio é extraído nas melhores condições possíveis, o que quer dizer com o menor impacto ambiental e social", recorda o professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Não podemos atirar o objectivo global da transição climática para o lixo só porque há nódoas no pano. Não vai ser fácil, nem simples, garantir as tais "melhores condições possíveis". É uma tarefa ciclópica que exige compromisso, lisura e cedência de todas as partes. Mas não temos mesmo outra opção se não quisermos entregar às próximas gerações um planeta demasiado inóspito.

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