Viver num bairro desde a infância e olhar a vida como viagem

Junto ao canteiro defronte da sua montra de exposições, pôs a funcionar uma mini-biblioteca. E a seu tempo, é possível tirar também, do lugar onde são postos os livros, um ou dois limões.

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Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem.

Fernando Pessoa/Bernardo Soares, Livro do Desassossego

Viver num bairro, quase desde o nascimento, passando aí a infância, a juventude e a velhice, é situação que vai sendo pouco habitual, tornando-se mais gratificante quando há quintais nesse bairro, árvores, proximidade de jardins e uma imensidade de pássaros que aí encontram habitat, ajustando-se a sua arquitectura à vida partilhada com vizinhos.

Hoje, em convivência com novos moradores, fazemos parte dos vizinhos avós, e nem as muitas alterações que o espaço tem vindo a sofrer, descaracterizando-o, o que é visível no desamor pela terra e pelas plantas, substituídas por cimento, ou no gosto por altos muros que aprisionam as casas, motivam o desejo de saída porque aí está o cerne da nossa vida.

Foi o bairro desenhado de forma a propiciar o encontro, sendo constituído por ruas ímpares e pares, todas confluindo em três ruas principais que, no sentido ímpar-par, desaguam, tais afluentes, na rua central, a mais importante, atravessando-a e continuando o seu percurso até à grande Av. da Torre de Belém. Essa rua central, “a rua das lojas”, em toponímia espontânea, chama-se Duarte Pacheco Pereira e, na óptica das viagens dos portugueses, substituiu-se a identificação inicial, ruas ímpares e pares, por nomes de navegadores, ou não se situasse o bairro perto da “Praia do Restelo”, lugar de partida de naus e onde a voz do “Velho do Restelo”, por desejo de Luís de Camões, se fez ouvir, clamando contra a ambição e a ganância.

Não faltou também a preocupação com a existência de uma escola primária, por onde várias gerações passaram, situada junto a um belo jardim cujas árvores, algumas centenárias, ainda permanecem, tendo, no entanto, secado a fonte de pedra que tão aprazível era para as crianças. Em suma, tudo a uma dimensão humana que o passar do tempo e a venda de casas foi alterando. Com efeito, nada ali falhava, e nas diferentes lojas traduzia-se o pulsar da vida nessa azáfama diária, caracterizada também pela saudável convivência entre várias gerações, avós, pais e filhos.

Situadas numa e noutra margem da grande rua central, em plano mais elevado e protegidas por amplas galerias, lembro, desse tempo, a peixaria, a leitaria, a padaria, os talhos, o lugar (só para produtos hortícolas), a farmácia, a drogaria, as mercearias, os cafés (um deles, célebre, hoje em dia), a gelataria, a papelaria, a sapataria, a retrosaria. Um “luxo” diversificado que deu lugar, após o surgimento das grandes superfícies, a um centro de lojas repetitivo, nos seus inúmeros restaurantes, o que alterou a convivência de outrora. Mas há dádivas que abrem novas possibilidades de encontro, revigorando e exaltando lugares. O que passarei a contar é disso um exemplo expressivo.

Foi no liceu D. João de Castro, onde iniciei a minha carreira de professora, que tive como aluno, Miguel Buzaglo. Tímido e pouco interventivo, revelava em análise de texto o seu interesse e gosto pela Poesia, bem como imaginação e criatividade férteis. Não sendo muito habitual encontrá-lo no bairro, o contacto far-se-ia, anos mais tarde, quando começou a gerir uma lavandaria, em boa hora surgida no nosso espaço habitacional e a que não será alheia a estreita ligação familiar à antiga Tinturaria Portugália (importou a 1.ª máquina de limpeza a seco, em 1931).

A abertura da nova loja, em 2003, surpreendeu os residentes pelo inusitado e pelo cuidado, na sua apresentação: uma gravura, representando uma lavandaria antiga, preenchia praticamente todo o espaço da montra principal, acompanhada de uma colecção de ferros de engomar (sécs. XVII a XX), todos identificados e em tamanhos vários, não faltando modelos infantis, distribuídos por pequenas prateleiras e base da montra. Exemplo flagrante do efémero que ascende à beleza, por vontade de quem por ele foi emotivamente tocado, enriquecendo o mundo à sua volta.

É na montra lateral da referida loja, frente à Rua Duarte Pacheco Pereira, que Miguel Buzaglo tem desenvolvido a sua actividade artística, com exposições temporárias, englobadas na “Project-Art” e apoiadas graficamente pela “EuroCartazes”. O fio condutor das suas várias intervenções, como testemunhou, reflecte a ideia clássica da vida como uma viagem, explorando opções e caminhos estreitamente ligados à condição humana. Destacam-se, entre outras, a instalação Never Lovelier -BD, (2004); Tinturaria Portugália – Fotografia de 1940, (2006); 50.º Aniversário da Viagem do Homem à Lua, (2019); Fernando Laidley, Uma Vida de Aventura, (2021); O Brinquedo em Portugal (2022); Fernando Pessoa/Bernardo Soares, texto do Livro do Desassossego, (2022) (escolhemo-lo como epígrafe), Tolentino de Mendonça, homilia da missa de Natal (2022), na Sé do Funchal, (2023) ou 24h de Le Mans, centenário, (2023). Será oportuno realçar que de 1996 a 2000 participou, como aluno, em vários projectos da Escola de Artes Visuais, ligada à Associação Maumaus – Centro de Contaminação Visual, destacando-se, “Action Man House” (1988), “NonStopOpening”, Galeria ZDB, Lisboa (1999) ou “Art Fort Art’s Sake”, Goethe Institut, Lisboa (2000).

Chamo a vossa atenção para o último trabalho de Miguel Buzaglo, que poderá ser visto até meados de Dezembro. Num espaço, amplamente dominado pelo branco, põe-se em cena o eloquente diálogo do verso – La pierre n’entend son coeur battre que dans la pluie, (“A pedra não ouve o seu coração bater senão com a chuva”) – do poeta Malcolm de Chazal (1902-1981), com a divindade que se projecta numa pedra metamorfoseada, no caso, um basalto que terá penetrado num calcário fossilífero, englobando-o em si. Junto a esta poderosa imagem que ostenta um significativo claro-escuro, fruto do trabalho paciente do tempo que define uma “frase silenciosa” a desvendar, deixa Miguel Buzaglo registadas as suas palavras, reveladoras do seu envolvimento poético com o diálogo por ele encenado: Só oiço o meu coração bater quando chove.

Realço ainda uma outra ideia concretizada por Miguel Buzaglo, num pequeno espaço que curiosamente criou, junto ao canteiro defronte da sua montra de exposições. Nesse pequeno espaço, pôs a funcionar uma mini-biblioteca, apelando indirectamente à participação e à dinamização de leitores interessados, residentes ou visitantes do bairro. É gratificantemente visível o movimento e a renovação constante de livros, nesse vaivém em que se deixa e se leva. E a seu tempo, é ainda possível tirar, do lugar onde são postos, um ou dois limões e trazê-los para casa, juntamente com o livro escolhido.

Termino com uma experiência que o meu ex-aluno me revelou: “Sabe… há uns anos estava a voar sozinho (parapente) na zona da Serra da Estrela e de repente veio acompanhar-me uma grande ave de rapina, foi... um Momento da Vida.”

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