Por uma política de cuidados

Continuamos a ver notícias das milhares de crianças que não têm lugar nas creches, do lar ilegal que abandona quem deve cuidar, da sobrecarga das famílias que têm de trabalhar e cuidar ao mesmo tempo.

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Passados quase 50 anos do nascimento da nossa democracia, urge perguntar: como chegámos até aqui? Como é que continuamos, em 2023, a ver notícias das milhares de crianças que não têm lugar nas creches, do lar ilegal que abandona quem deve cuidar, da sobrecarga das famílias por terem de arranjar forma para trabalhar e cuidar ao mesmo tempo (quantas não tiveram de abandonar a sua vida profissional para ocupar o lugar que o Estado deixou vazio, ficando condenadas a reformas miseráveis), dos baixos salários em todas as profissões do cuidado.

Quando analisamos a Carta Social publicada este ano, ficamos a saber que em 2021 a taxa de cobertura de respostas à primeira infância (creches) era de 52,9%; que a taxa de cobertura de respostas a pessoas idosas (centros de dia, lares e serviço de apoio domiciliário) era de apenas 11,9%, e que a taxa de cobertura de respostas a pessoas com deficiência (Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão e lares residenciais) era de uns escandalosos 4,2%.

São, também, estes números que ajudam a perceber que existam mais de 800 mil cuidadores e cuidadoras informais, que tanto lutaram, e lutam, pelo Estatuto do Cuidador Informal, a quem o Governo respondeu com demasiado pouco, deixando tantos dos direitos conquistados por cumprir. É preciso garantir apoios a quem cuida, seja pelo direito a conciliar os cuidados com as outras dimensões das suas vidas, como na garantia que o Estado lá estará, com profissionais e serviços, quando necessário.

Vale a pena olharmos, também, para as restantes respostas que têm sido dadas.

Com o programa Creche Feliz, o Governo inscreveu a gratuitidade das creches na lei, mas o problema principal manteve-se: há um défice crónico na oferta, não há vagas suficientes na rede existente, 120 mil crianças ficaram de fora deste programa, sem qualquer resposta por parte do Estado. Precisamos de uma rede de creches que garanta resposta a todas as crianças. Precisamos de aumentar a rede existente, criando uma rede pública de creches, com a possibilidade de serem geridas municipalmente.

Nas respostas à velhice, mesmo depois de conhecermos a brutal realidade que se vive em alguns dos lares, o Governo, para além de inspecionar alguns e decretar o seu encerramento, nada fez para combater o problema na sua raiz: a inexistência de respostas. Precisamos de lares acessíveis a todas as pessoas, mas também de respostas que escapem à lógica da institucionalização, como bolsas de ajudantes familiares e assistentes pessoais, centros de dia e de noite, de uma rede pública de lares. Respostas que garantam o direito ao cuidado quando mais precisamos.

Todos e todas precisamos de ser cuidadas em algum momento da nossa vida, seja na infância, quando adoecemos, seja na velhice. É um assunto que importa a toda a sociedade, mas que não tem a atenção nem as políticas públicas que exige.

Há uma campanha que tenta dar voz ao problema, e que propõe respostas “Direito ao Cuidado, Cuidado com Direitos” é o seu mote e com ela veio uma Iniciativa Legislativa Cidadã que se propõe a recolher 20.000 assinaturas para que levemos esta discussão à Assembleia da República.

As propostas passam pelo reconhecimento do direito ao cuidado na lei, e com ele a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, que garanta nomeadamente uma rede pública de lares/centros de dia com cuidados individualizados, serviços de apoio domiciliário, rede de creches públicas, bolsa pública de assistentes pessoais. Mas também a exigência de direitos laborais nas profissões ligadas aos cuidados, e a criação de licenças pagas para cuidar, que possibilitem a conciliação destas dimensões inseparáveis da vida.

Portugal precisa de uma política de cuidados e que nos mobilizemos para a conquistar.

Membro da Campanha “Direito ao cuidado, Cuidado com direitos”

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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