O discurso de Guterres e o canto das Erínias

O que mais impressiona na polémica em torno das declarações de Guterres é que dizer o óbvio, e dizê-lo claramente – prevenindo, tanto quanto é possível, equívocos – gere, ainda assim, equívocos.

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Orestes, ao cometer matricídio, vinga o seu pai, Agamémnon – que a sua mãe, Clitemnestra, assassinara. Clitemnestra, ao cometer mariticídio, vinga a sua filha, Efigénia – que o seu marido, Agamémnon, sacrificara, para permitir a expedição a Tróia. Mas que tem Orestes – que as Erínias, espíritos da vingança, agora perseguem – a ver com o rapto de Helena e os ódios dos seus antepassados, ansiosos por fazer a guerra na Ásia Menor? Nada.

Vem isto a propósito da situação no Médio Oriente. Mas, se recordo estas tragédias, que Ésquilo inscreveu na nossa memória com uma crueza que nenhuma racionalização permite adocicar, não é para dar ao que hoje se passa em Israel e na Palestina a aura de uma intemporal recorrência. É antes para sublinhar a angustiante tristeza de pessoas morrendo e matando, inflamadas por ódios cuja origem precede o seu nascimento. E, sobretudo, por ódios cujo sentido lhes escapa, mesmo quando a eles se agarram com as unhas e os dentes do espírito que lhes resta, pois só eles lhes dão o alento sem o qual não podem suportar nem mais um dia.

Dirão alguns que a religião é, nesta guerra, mero pretexto. Há outros interesses: políticos, económicos, geoestratégicos. Certo. Mas é pior do que isso. A religião é, nesta guerra, combustível humano. São achas, atiçador, gasolina. São os mais indizíveis desgostos, desesperos, devastações, e o desejo de lhes sobreviver um pouco mais, e a necessidade de dar algum sentido aos escombros e aos cadáveres, é tudo isso, que mantém com a religião, com todas as religiões que se apoiam na ideia mais ou menos secularizada do martírio, posto ao serviço da guerra. Nisso, esta guerra – esta guerra que é tão nossa, fruto que somos dessa matriz judaico-cristã-islâmica – é infame para além da infâmia de todas as guerras, em que sempre a vingança ocupa um lugar central.

Mas não é preciso ir tão longe e fundo para ver minimamente claro. De facto, o que mais impressiona, na polémica em torno das declarações de Guterres, é que dizer o óbvio, como ele fez, e dizê-lo claramente – de forma equilibrada, justa, certeira, procurando, tanto quanto é possível, prevenir equívocos – gere ainda assim isso mesmo: equívocos. Na verdade, não gera. O equívoco – não nos equivoquemos nós – é construído. O equívoco faz parte da guerra. Quando a reiteração de ideais humanitárias gera tal celeuma, quando se quer fazer letra morta da carta, quando o cinismo já quase nem se preocupa em ocultar-se, algo vai mal, muito mal, de mal a pior, e mais rápido do que julgávamos, neste mundo. Mandam as Erínias, e o seu canto de vingança é um feitiço do qual tardamos em ter a coragem de nos querermos libertar.

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