Viva Nuno Portas!

Hoje, quando o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana abre o período de candidaturas ao Prémio Nuno Portas, não poderíamos, naturalmente, deixar de nos associar e regozijar.

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“Dizer algumas breves palavras sobre a actividade profissional do arquitecto Nuno Portas não é fácil, porque o seu percurso é longo e muito intenso, e tem a coerência própria de alguém heterodoxo, com o gosto pelo contraditório e pelo contrário.” [1]

É exatamente o que vamos pensando sobre o longo e frutuoso trabalho que Nuno Portas desenvolveu e projectou. E sobre o futuro que nos planeou.

Escrever umas breves palavras sobre Nuno Portas é fácil e difícil. Fácil, pois a sua vida e a sua obra constituem referências incontornáveis da arquitetura e do urbanismo em Portugal na segunda metade do século XX. Difícil porque provavelmente escapar-nos-á, por entre os dedos, aquilo que gostaríamos que ficasse nas mãos. A sua notável heterodoxia. O seu compromisso. E as suas lições.

Nuno Portas foi um académico livre na sua heterodoxia. Livre na forma como se relacionou com as instituições académicas, pois, fazendo escola e deixando legado por onde passou (nas Universidades de Lisboa e do Porto, no LNEC), nunca as sentiu como território e propriedade suas. Assim, sempre entendeu as estruturas académicas como espaços de construção de conhecimento e não como estruturas defensivas de posições e hierarquias estabelecidas.

A sua liberdade académica esteve também bem presente no modo como encarou a arquitetura enquanto campo disciplinar e área do conhecimento. Quando sentiu que, para responder às suas inquietações e preocupações científicas, haveria que estabelecer pontes com outras áreas do conhecimento, fê-lo de forma empenhada e consciente, encarando os territórios disciplinares como campos abertos ao diálogo interdisciplinar. Não sentiu que isso diminuía a importância da arquitetura, mas que, pelo contrário, a valorizava e fortalecia na sua relevância científica e social.

A sua heterodoxia livre esteve também bem presente no modo como assumiu a coerência entre pensamento e ação. Nuno Portas fundou, na democracia, a Secretaria de Estado da Habitação e Urbanismo. É um legado, no mínimo, histórico. A sua herança como secretário de Estado é tão reconhecida e reconhecível que nos exige, pelo menos, que tentemos perseguir os objetivos que tão bem delineou e que hoje emergem, mais uma vez, com aguda atualidade. Nunca, como com ele, a política esteve tão perto do seu significado original, grego, e refletido no seu objetivo central de estudo – a cidade (polis).

Essa mesma preocupação com a cidade esteve bem presente no seu papel de vereador do Urbanismo na Câmara Municipal de Gaia, no final dos anos noventa do século passado. Mais uma vez, vimos como a sua ação cívica era indissociável do seu pensamento enquanto arquiteto e como o seu labor académico tinha subjacente um forte compromisso cívico. Na vida e obra de Nuno Portas encontramos recorrentemente essa preocupação de se colocar ao serviço da comunidade e, com ela, procurar construir uma cidade onde todos têm lugar e onde a arquitetura não é uma mera afirmação de brilhantismo profissional, mas sim um instrumento poderoso para a construção dum espaço urbano mais democrático.

Hoje, quando o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana abre o período de candidaturas (https://www.portaldahabitacao.pt/web/guest/np) às instituições do ensino superior para concorrerem ao Prémio Nuno Portas (que acompanha o prémio que homenageia uma outra notável figura da nossa modernidade, Nuno Teotónio Pereira), não poderíamos, naturalmente, deixar de nos associar e regozijar.

Não resistimos a citar uma resposta sua, quase biográfica, dada numa entrevista em 2012 ao PÚBLICO, a uma provocadora pergunta sobre a sua opção “(…) pelo urbanismo em vez da arquitectura” que expressa bem a inquietude e permanente insatisfação que o caracteriza e nos importa relevar: “Isso aconteceu na segunda metade dos anos 60. Eu era um apaixonado pela arquitectura, mas a minha primeira grande questão foi saber se optaria pelo cinema. Acabei Arquitectura, fiz a tropa e pensei em ir estudar realização na Cinecittà. Tinha muito contacto com a Itália, e estava hesitante. Havia também o problema de casar ou não casar: se fosse para Roma, adiava o casamento. Nessa altura, isso era difícil, hoje é mais fácil. Era a grande altura de decidir. Fui ter com o [Nuno] Teotónio Pereira, que conhecia vagamente, e disse-lhe: 'Há muita gente a fazer arquitectura em Portugal, mas não a escrever; eu gosto muito de cinema, mas tenho que viver, que montar uma casa, etc., e não tenho a certeza se vale a pena ficar como arquitecto ou não'. Ele disse-me: 'Tenho aí uma oportunidade'. E deu-me uma casa a fazer, na Praia das Maçãs. O Teotónio entregou-me essa casa como um teste, para saber se eu devia ficar no atelier dele. Fiquei 17 anos, até ao 25 de Abril. Foi decisivo para mim. Posso dizer que tudo aquilo que sou, devo-lho a ele. Simplesmente, esta minha inquietude, de andar sempre a mexer e a mudar, levou-me depois a dizer-lhe: 'Interessa-me fazer projectos, mas também escrever sobre a arquitectura'. A revista Arquitectura tinha surgido nessa altura, e comecei a escrever. Depois virei-me para a habitação social, e logo a seguir para o urbanismo, tudo coisas muito políticas."

É isto – nos estudos, trabalhos ou projectos académicos e científicos – que procuraremos premiar. Por um lado, a inquietude, a insatisfação e a interrogação permanente, por outro a diversidade (in)disciplinar com que colide a Arquitectura. E, acima de tudo, relevar a militante intervenção cívica de Nuno Portas para tornar as cidades e periferias portuguesas em algo melhor, o que se encontra tão bem traduzido numa resposta sua a uma das muitas notáveis entrevistas que foi dando ao longo da sua vida: “Nos planos, não faço os feitios, faço as malhas; os feitios, outros os farão.” Mas sabemos bem o quanto Nuno Portas gostava de todo o tipo de “feitios” quando Catarina Portas convoca, na cerimónia de apresentação do prémio no passado dia 25 de Outubro, o seu notável cachimbo. “Ceci n’est pas une pipe.” O seu perfil ficava bem definido e o plano cinematográfico realizado. Obrigado, Nuno Portas.

Foto

[1] Jorge Figueira. Texto lido, em 3 de Julho de 2017, no Dia Nacional da Arquitectura numa homenagem a Nuno Portas e posteriormente publicado em 17 de Julho de 2017 no suplemento ípsilon do PÚBLICO

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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