Nuno Portas: entre a convicção e a incerteza

O trabalho e o pensamento de um arquitecto e urbanista cujo percurso se confunde com a história da cidade contemporânea

Para se chegar à Fábrica ASA em Guimarães teremos de nos confrontar com os vários tempos da cidade portuguesa. Saídos da auto-estrada passamos pela cidade histórica, com sua carga fundacional e arquitectura pétrea, mas depois sucedem-se quintas, casas, pequenas fábricas, fragmentos rurais, que convivem laconicamente. Um mundo difuso e não sistémico. A exposição O Ser Urbano. Nos Caminhos de Nuno Portas, mostra o trabalho e o pensamento de um arquitecto e urbanista cujo percurso se confunde com a história da cidade contemporânea, num território que é precisamente objecto de interesse de uma das suas ultimas incursões no “ser urbano”.

Mas uma exposição sobre o arquitecto Nuno Portas coloca à partida um desafio particular. A sua obra não reside na actividade de projecto e construção que caracteriza o percurso clássico de um arquitecto. Não permite mostrar apenas projectos e obras de arquitectura. Nem sequer reside apenas na produção de pensamento disciplinar. Ou na actividade critica e de divulgação das ideias. Nuno Portas é um arquitecto que concentra um pouco de todas estas actividades, sem que estas actividades se sucedem de modo cronologicamente ordenado. Todas se sobrepõem.

O seu percurso é um complexo palimpsesto de cinco décadas. Começa como arquitecto de casas, bairros e igrejas, como afirma o próprio e percorre as figuras do urbanista, do “arruador”, do político, do consultor, professor, divulgador e do investigador. E na exposição encontramos projectos nos Olivais em Lisboa, produzidos na década de 1950, mas também textos de crítica de cinema, primeiras edições dos livros, escritos na década de 1960 sobre a cidade e a arquitectura, diapositivos de viagens pelo mundo, manuscritos, esboços, e os livros dos heróis do arquitecto. Até aos Dez Mandamentos do Urbanismo Municipal de 1982.

O arquitecto e comissário Nuno Grande optou por assumir esta característica do percurso de Nuno Portas. A sobreposição e a complexidade, e a partida permanente para outras geografias e outros problemas. Num espaço único num piso da Fábrica ASA podemos, com o projecto expositivo, ler de imediato a ideia da sobreposição. São seis sectores temáticos cruzados por uma mesa central com diapositivos de Portas e fotografias do artista Carlos Lobo, que produziu um trabalho sobre o Vale do Ave para esta exposição.

A imagem dominante é a das mesas na vastidão do espaço. As mesas contêm centenas de desenhos, livros, jornais e maquetas. E cada uma delas contém ainda numa estratificação horizontal de conteúdos várias camadas de informação. E para poder compreender a densidade há que mergulhar, com tempo, nestes extractos.

Mas o comissário não abdicou de uma narrativa estrutural com um nexo cronológico. O primeiro sector, intitulado A arquitectura para hoje: quando os edifícios moldam o espaço colectivo (1957-1965), é o que mais se relaciona com a prática da arquitectura. Aqui podemos ver os projectos de habitação, com a convicção do seu papel no espaço colectivo e individual da sociedade, que moldaram o interesse de Portas nestes anos. Daí em diante o arquitecto iria privilegiar o “desenho do chão” relativizando o protagonismo da arquitectura. É o segundo sector, A Cidade como Arquitectura. Quando o espaço colectivo molda os edifícios (1962-1974). E aí estão obras como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, de 1962, feita em co-autoria com Nuno Teotónio Pereira e hoje classificada como Monumento Nacional, que embora sendo um edifício já está a falar de modos de intervir na cidade, com as suas conexões urbanas e espaços colectivos.

No 25 de Abril de 1974 Portas é chamado a dirigir a Secretaria de Estado da Habitação e Urbanismo. Tema vertiginoso nos anos da revolução quando a questão da habitação está à beira da explosão social. É o momento em que o arquitecto, que se afirma um reformista e não um revolucionário, assume o papel do decisor, tornando realidade as suas investigações sobre participação. As Operações S.A.A.L. são fruto deste período que na exposição corresponde ao terceiro sector, O processo também desenha: da participação à gestão do Habitat (1969-1989). Aí está, numa das mesas, o despacho que deu origem ao S.A.A.L. corrigido pela mão do próprio Portas.

Com a década de 1980 os municípios assumem um protagonismo renovado e a gestão do território um questão em aberto. Portas aí estaria interessado na figura do Plano Director Municipal. Estamos no quarto sector das Novas Políticas Urbanas: o planeamento municipal de escala variável (1978-1998) mas também no quinto A Cidade como Obra Aberta: entre o desenho do chão e o projecto urbano (1988-2008).

E no sexto e último sector o confronto sem síntese - com “convicção e incerteza”, título de uma entrevista que deu ao Jornal de Letras em 2006 - com a cidade subjectiva. Aquela onde mora a esmagadora maioria da população, aquela que resiste a uma modelação sistémica, aquela que aparenta não ser domesticável. É a proposta desconcertante de aceitarmos a forma da cidade disposta de modo não linear ou sequencial. Portas chama-lhe o “Hipertexto urbano”.

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