Dar gás à incapacidade

Pagaremos pelo excesso de produção de renováveis, pelos custos indirectos destas, incluindo a capacidade de reserva. Quem pagará pela incapacidade de planear um sistema balanceado?

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A segurança de abastecimento num sistema com elevada penetração de renováveis, requer capacidade de reserva para fazer face à intermitência das renováveis e evitar apagões, e esta capacidade de reserva tem custos. Em Espanha o Ministério da Transição Ecológica está atualmente a implementar um mecanismo de remuneração de capacidade para resolver os desafios económicos das centrais de gás de ciclo combinado e, ao mesmo tempo, contribuir para garantir a segurança do abastecimento.

Esta medida é fundamental para evitar o encerramento de 10 GW de centrais de gás que atualmente são utilizadas apenas 1500 horas por ano, com uma elevada perda de rentabilidade. Para colocar esse mecanismo em prática, estão a ser planeados leilões para a criação de um Mercado de Capacidade, no qual diversas formas de geração de energia, incluindo centrais a gás, sistemas de armazenamento com baterias e centrais de bombeamento puro, terão a oportunidade de participar.

Qual o potencial impacto em Portugal? De 1 janeiro a meados de setembro de 2023, Portugal importou 20,9% de electricidade vinda de Espanha (alegadamente por ser mais barata que a produzida em território nacional). Na fracção da electricidade que importámos 20,9% corresponde a energia nuclear (significando que 5,6% da electricidade consumida em Portugal teve origem nuclear), 54,7% renováveis, 21,2% não renováveis (excluindo nuclear) e 3,2% provém do mix francês importado de França.

Curiosamente, a distribuição das fontes segue o perfil de produção em Espanha, o que parece indiciar que não importamos preferencialmente em horas de maior produção de renováveis. A continuar o padrão de importação do ano passado, e que se manteve este ano, o custo adicional de capacidade também poderá vir a ter impacto no custo da electricidade importada por Portugal.

O mercado de capacidade também será necessário a nível nacional para garantir a segurança de abastecimento. Um estudo da Accenture para a Associação Portuguesa da Energia (APE) evidencia que entre mais de 100 inquiridos, especialistas da área energética, de empresas, associações do setor energético, da academia, organismos públicos e associados da APE, quase 90% considera importante que Portugal mantenha centrais a gás natural para servirem de backup para lidar com a variabilidade da electricidade renovável.

“Não há paz até ao último inverno sem gás” dizem os activistas greve climática estudantil. No entanto, este objectivo parece cada vez mais distante revelando que a meta de electricidade 100% renovável é apenas uma miragem. À medida que a penetração de renováveis na rede aumenta, crescem drasticamente os custos de sistema devido aos custos indirectos da produção. Entre estes, para além dos custos de expansão da rede eléctrica, figuram também os resultantes da necessidade de mecanismos de backup e, consequentemente, o custo de capacidade de reserva.

A necessidade de satisfazer a procura e garantir a segurança de abastecimento justifica que o Plano Nacional Integrado de Energia e Clima Espanhol (PNIEC) não considere encerrar quaisquer centrais a gás de ciclo combinado nos próximos anos. No entanto, o Governo Espanhol prevê encerrar metade do parque nuclear até 2030 (algo que também terá impacto neste lado da fronteira).

Numa entrevista recente, González Moya, o director-geral da APPA Renovables, a associação espanhola para as energias renováveis, demonstrou não ter medo de apoiar o mix nuclear-renovável. Na entrevista defendeu que as renováveis e as restantes tecnologias terão a sua importância dentro do famoso trilema energético: preço, sustentabilidade e segurança de abastecimento.

Neste contexto questionou se, caso se mantenha o calendário de encerramentos das centrais nucleares, com que tecnologias serão substituídas estas centrais? Encerrar centrais nucleares e substituí-las por centrais a gás vai contra os objectivos de descarbonização e as centrais nucleares proporcionam estabilidade ao sistema. Estamos numa situação que poderão ser encerradas sem piorar o sistema? O mais importante é apoiar a decisão com base numa análise racional do impacto, sem tomar posições, nem a favor nem contra. É uma posição pragmática a favor duma análise desapaixonada do mix ideal, que defende as renováveis, mas compreende a necessidade de haver potência firme descarbonizada providenciada pela energia nuclear.

Em Portugal, cerca de um quarto dos inquiridos pela Accenture considera que a opção nuclear deve ser equacionada. E deve! De preferência antes de se avançar numa penetração excessiva de renováveis. É essencial fazer uma análise de custos totais de sistema (“Total System Costs”) para determinar o mix adequado de produção que minimize os custos. É essencial encontrar a combinação ideal de electricidade despachável, renováveis e capacidade de reserva que não obrigue a manter uma dependência do gás natural, garanta a estabilidade do sistema e minimize os custos para o consumidor. Não fazer o trabalho de casa pode sair caro.

A perda de rentabilidade das centrais a gás que asseguram a capacidade de reserva é uma preocupação, mas também o excesso de produção de electricidade, em alguns períodos do dia, tem causado preocupação pelo efeito que tem nos preços. No início de Agosto um grupo de associações de energia solar e renováveis disse à Comissão Europeia que a União Europeia precisa de resolver o problema do desperdício do potencial de energia solar e dos preços negativos que afectam as receitas dos projectos.

Os contratos por diferenças bidirecionais (CFD), propostos na reforma do mercado da electricidade da UE, proporcionam uma receita garantida para as energias não fósseis, tendo sido propostos como uma forma de estabilizar os preços voláteis da energia. Os preços negativos sinalizam um desequilíbrio no mercado e podem desencorajar o investimento futuro em mais infra-estruturas energéticas. Mas preços negativos em alguns períodos do dia resultam de excesso de produção ou défice de procura, e ao introduzir-se mecanismos de receita garantida, alguém há-de pagar a diferença...

Ao optar-se pelo gás natural para lidar com a variabilidade da electricidade renovável, sem considerar sequer uma combinação de renováveis e nuclear que minimize esta variabilidade, fica claro que o objectivo não é minimizar as emissões de carbono. Pagaremos pelo excesso de produção de renováveis, pelos custos indirectos destas, incluindo a capacidade de reserva (portuguesas e espanholas). Quem pagará pela incapacidade de planear um sistema balanceado?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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