Que (sobre)viva a Palestina

A montante desta guerra estão políticas imperiais de rabo de fora, assentes em mapas inexpressivos da realidade dos territórios. Estão fora de moda a ocupação ilegítima, o colonialismo e o racismo.

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Suad Amiry é arquiteta e escritora, filha de pai palestiniano e de mãe síria. Entre 1991 e 1993 foi membro da delegação palestiniana de paz em Washington. Entrevistei Amiry em 2010, em Ramallah, para a série O Tempo e o Modo. Pergunto-lhe qual julga ser o núcleo do conflito entre a Palestina e Israel: “Não nos esqueçamos de que na altura havia um mandato britânico que garantia apoio aos judeus que se estabelecessem na Palestina. E aqui estávamos nós, uma nação humilde, que de repente se tornou destino para os judeus. Mas aqui já havia uma sociedade; havia uma cidade chamada Jafa; cidades chamadas Haifa, Lydda ou Ramla. Existiam camponeses que trabalhavam nas suas terras. Muito para além de questões semânticas sobre se esta terra se chamava Palestina, interessa saber que existia uma terra com os seus habitantes, ponto final. Para um palestiniano, não é um exercício intelectual, não é um curso de História. É a nossa existência. Esta é a terra; esta é a casa do meu pai e foram-nos tiradas. Sabemos isto como sabemos que esta é a nossa pele.”

O mandato britânico que Amiry refere é a Declaração de Balfour, assinada em 1917 entre um secretário de Estado e um barão, onde se reafirma o desejo de que a Palestina passe a ser o lar do povo judeu, desde que nada prejudique os direitos civis e religiosos das “comunidades não judaicas" — assim eram referidos os Palestinianos — e, ainda, que os direitos civis dos judeus fossem ali “os mesmos do que em qualquer outro país”. Se a última recomendação se tornou uma realidade, a primeira foi incumprida na íntegra: os prejuízos, para os “não judaicos” da região, foram e são, imensos.

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Declaração Balfour, escrita pelo secretário britânico dos Assuntos Estrangeiros, Arthur James Balfour, dirigida ao barão Rothschild, líder da comunidade judaica do Reino Unido

Continua Amiry: “Se me perguntar qual é a natureza do conflito entre palestinianos e israelitas hoje, respondo numa palavra: terra, nada mais. E eu quero que os israelitas deixem de se apoderar das nossas terras, porque é isso que fazem. O que realmente magoa é que nós, palestinianos, reconhecemos o Estado de Israel em 1988, há já 20 e tal anos. Aceitámos viver num Estado que se resume a 22% do que era a antiga Palestina. E Israel — que nós reconhecemos — ocupa 78% do nosso território. Todos os dias se constroem mais colonatos judeus e aqui chegam mais pessoas, criando-se uma realidade conflitual no terreno. É uma tragédia em curso.”

Um ministro do recém-formado governo de emergência israelita disse há dias, na televisão nacional, que Gaza “vai ser menor no final da guerra”, prevendo-se que passe a ter uma parte classificada como zona de segurança: “Temos de deixar claro que aquele que começa uma guerra com Israel perde território.” Israel avança no terreno de guerra em guerra; as declarações do ministro apenas confirmam o ponto de vista de Amiry.

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Suad Amiry em O Tempo e o Modo

A montante da atual guerra estão políticas imperiais de rabo de fora, assentes em mapas inexpressivos da realidade vivida nos territórios. Estão fora de moda — fora do tempo e fora da lei — a ocupação ilegítima, o colonialismo e o racismo. Que de forma violenta e anacrónica aconteceram com total impunidade ao longo de décadas no território da Palestina.

Sou de ascendência judaica e desejo muito que Israel possa viver em paz. Lamento todo o horror, toda a violência, aconteça onde for. Profundamente lamentável é que não seja claro para todos que esta guerra resulta do exercício continuado de políticas xenófobas e pró-fascistas da extrema-direita no poder em Israel. Políticas que deixam de fora uma larga maioria de judeus, entre os quais me incluo, que sabem que só com o coração em ambos os lados é que algum dia haverá paz. Que (sobre)viva a Palestina.

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