Fatalmente, excluiu-se da agenda os temas escolares incómodos

Misturou-se a herança da União Nacional – até com sedes de agrupamento que tratam como colónias as restantes escolas – com os excessos do “processo revolucionário em curso”.

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Na longa luta dos professores contra a sua proletarização, lembrei-me muitas vezes do aforismo de Ludwig Wittgenstein: "As relações humanas seriam muito diferentes se fosse transparente a relação entre dor e linguagem, se sentíssemos a dor do outro ao ouvi-lo enunciando a palavra dor". Se assim fosse, se governantes e deputados sentissem as dores dos professores, talvez a profissão não estivesse tão proscrita e a queda do laboratório da democracia – a escola pública – não se relacionasse tanto com o aumento brutal das desigualdades educativas e com a radicalização de eleitores.

Aliás, ponha-se a seguinte questão a quem prescreve sobre salas de aula, professores ou escolas:

- Quando é que leccionou a última vez nesse grau de ensino? Se foi há mais de cinco ou seis anos, inscreva desactualização; se nunca o fez, pior ainda.

A propósito, coloque-se a mesma questão a quem está há um ano na mesa de negociações sem qualquer acordo ou avanço significativo; e acrescente-se, enviando-a também ao Parlamento:

- Qual é concretamente a agenda, para além do desespero com a falta de professores após anos a fio de negação?

É que a falta estrutural de professores não se resume à justíssima e viável recuperação do tempo de serviço. Esse afunilamento, revestido por uma sobredosagem mediática de falácias, interessa ao Governo e ao marketing político. Tenta virar a opinião pública contra os materialistas professores, permite que o Parlamento fuja a temas incómodos e disfarça a incapacidade do Ministério da Educação em simular futuros encargos financeiros.

O grande problema dos tacticismos na política real é a própria realidade. O clima escolar caiu num estado tal, que a desorientação tornou incómoda a sua comprovada, e há muito documentada, falta de democracia. O estado de negação tem, como o da falta de professores, mais de uma década. O ambiente escolar radicalizou-se. É indisfarçável. Misturou-se a herança da União Nacional – até com sedes de agrupamento que tratam como colónias as restantes escolas – com os excessos do "processo revolucionário em curso", como concluiu a OCDE: "a indisciplina coloca Portugal no primeiro lugar do tempo perdido para começar uma aula."

Mas só se mediatizou a fuga a ser professor, porque estes explodiram em Novembro de 2022. A detonação deveu-se à ideia dos concursos nas escolas, com primazia para a farsa que os avalia. O grito de indignação arrastou os seus intermediários, os sindicatos, que progressivamente também afunilaram a agenda. É surreal o argumento de que professores são bem e devidamente avaliados e que o problema é a percentagem das quotas para tanta excelência. Desconhece-se se esta aberração resultou de outro acordo falhado de bastidores, e corrigir com a agenda das condições de trabalho é, concretamente, um conjunto vazio.

O estado pantanoso da mesa de negociações confere uma responsabilidade histórica aos grupos parlamentares do centro-esquerda e do centro-direita. Acima de tudo, recorde-se que a proletarizarão dos professores se efectivou (2006) em quatro eixos integrados: carreira, avaliação, burocracia e gestão. Dezassete anos decorridos, apenas na carreira houve uma mudança: caiu uma categoria - de professor titular - imposta pelo centro-esquerda, mas o centro-direita substitui-a por outra tragédia: vagas baseadas em quotas.

O clima escolar adoeceu e provocou, por mágoa, cansaço e revolta contida, a "desistência" de milhares de professores em funções e de milhares de qualificados que experimentaram. Note-se que os segundos foram alvo da avaliação com efeitos em concursos durante o congelamento (2011 a 2017), noutra perversidade acordada na mesa de negociações.

Mas também desistirão os que vão entrar numa selva de clientelismo e caudilhismo, e rotulados pela apressada e desorientada impreparação científica e pedagógica. Sublinhe-se que é mais um legado indecente da geração que governa, que concretiza o pecado original: a proletarização.

Em suma, ignorou-se, com hostilidade e arrogância, um estatuto social continuamente humilhado. Descongelou-se, e bem, as carreiras, mas também se accionou uma engrenagem diabólica que tritura a dignidade profissional. A inércia destes oito anos é historicamente inaceitável. Os míseros aceleradores – a hiperburocracia digital é o único eixo que acelera, mas em sentido contrário –, e os novos índices remuneratórios e vinculações escondem o essencial neste domínio: dos 130 mil professores da escola pública, já serão apenas 70 mil nos quadros de escolas ou agrupamentos.

Reconheça-se humildemente os erros. O mundo mudou e é imperativo reconstruir a democracia na escola. Use-se o verbo reconstruir para o que é público e comum. Elimine-se a conjugação exclusiva dos verbos vigiar e fiscalizar. Não se receie as soluções democráticas com pesos e contrapesos. É inadmissível que o legado para um futuro tão incerto inclua a repressão da liberdade de ensinar e aprender e da autonomia dos professores de cada escola.

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