Memórias em tempo de Amnésia

“Exílio sem saudade” é o subtítulo do livro de Álvaro Vasconcelos que é hoje lançado no PÚBLICO com um debate que será transmitido em streaming às 18h30. Memórias dos longos tempos do exílio.

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O autor e cronista do PÚBLICO Álvaro Vasconcelos apresenta hoje o novo livro Daniel Rocha
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A saudade como instrumento de poder

A cantora Teolinda Joaquina de Sousa Lança, conhecida pelo nome artístico de Linda de Suza, foi a salto para França em 1970, fugindo à miséria em Portugal: «Vivi na Amadora numa casa pré‐fabricada em madeira, que foi construída pelo meu pai. Fazíamos as nossas necessidades num balde. Passava lá perto uma pequena ribeira e era lá que depois as íamos deitar». A canção Um Português (mala de cartão), que a tornou famosa, procura traduzir a nostalgia e a tristeza de quem «deixou seu Portugal», mas «onde ele vai pensando voltar». A canção feita de saudade, triste fado dos portugueses que, pouco a pouco, iam compreendendo as razões que os tinham obrigado a migrar. O salazarismo promovia a saudade, procurando que os emigrantes continuassem a «viver» em Portugal mesmo estando em França.

A saudade que é todo o cais de pedra, como escreveu Pessoa, labirinto da cultura portuguesa para Eduardo Lourenço, feita ideologia de servidão do país hostil de onde tinham partido, para tentar impedir que a liberdade e a modernidade que estavam ao seu alcance rompessem com o conservadorismo do salazarismo. Não por acaso, o jornal da conservadora missão católica portuguesa em França chamava‐se Voz da Saudade.

A saudade que todos deviam sentir e a língua eram as amarras do lusotropicalismo, que supostamente integraria na nação, não só os africanos, como todos os portugueses e seus descendentes espalhados pelo mundo. Adriano Moreira retomara as ideias de Gilberto Freyre para a ampliar a «portugueses descendentes de portugueses ou filiados na cultura portuguesa», um conceito nacionalista da lusofonia. António Tabucchi iria, muitos anos depois, recusar exemplarmente esse conceito abrangente do ser português, em artigo publicado no jornal Le Monde, recusando a classificação de lusófono e opondo‐se à redução da frase de Fernando Pessoa «a minha pátria é a língua portuguesa» a um «slogan de um nacionalismo vulgar».

A língua é uma questão essencial da problemática do exílio. Para Kundera, o exílio significou o abandono do checo, a sua língua materna, para resgatar o seu europeísmo. Outros exilados recusam essa condição, cultivando a sua língua materna.

Se Portugal era também uma Europa raptada, para a maioria dos exilados políticos portugueses o português era uma língua de combate pela democracia. Não éramos portugueses porque falávamos e escrevíamos em português ou porque acreditávamos que descendíamos dos lusitanos, mas porque sonhávamos com uma democracia portuguesa em que fôssemos todos cidadãos. Nunca pensei em tornar‐me francês, o que, de qualquer forma, implicaria um longo e moroso processo e, apesar da ditadura e da miséria em que se vivia em Portugal, era com certo orgulho que dizia que era um antifascista português. E essa afirmação era tanto mais fácil quanto ser refugiado de Portugal, de Espanha ou da América Latina tinha uma certa aura no país pós‐Maio 68. Mário Soares, português europeu convicto, fez do francês a língua que podia dar a conhecer, na Europa, as misérias da ditadura. Foi em francês que publicou Portugal Amordaçado, na Calmann‐Lévy, em 1972. Não podia publicar em Portugal.

Eduardo Lourenço, ao contrário de Kundera, tornou‐se no exílio um hiperportuguês. A hiperidentidade que atribuía aos portugueses era de tal modo a sua que passou os anos de exílio escrevendo e dissecando a identidade portuguesa, discorrendo sobre esse sentimento que todos os portugueses partilhariam, «essa inexplicável mistura de sofrimento e de doçura a que chamam saudade». Talvez não seja um bom português, mas a saudade não faz parte da minha identidade, embora a percebesse nos imigrantes, que tinham deixado as famílias nos vales e nas montanhas das terras onde tinham nascido. Sentia também que muitos exilados tinham saudades do muito que tinham deixado em Portugal. Havia uma comunhão identitária entre os emigrantes, que viviam em França com o coração em Portugal, e os militantes políticos exilados, que viviam em França combatendo em Portugal. Eu, nesses combates, ia‐me tornando cada vez mais um português europeu, como já o tinha sido na minha juventude em África, através da literatura e do cinema.

Não me era estranha uma certa nostalgia do Douro da minha infância, mas a saudade das glórias do passado não era a minha. A saudade dum Portugal universal, que teria civilizado, cristianizando, o mundo, tinha sido destruída pela minha viagem ao horror do colonialismo. Os feitos heróicos de que Camões fala não eram a minha narrativa da história de Portugal, não acreditava no regresso de um qualquer D. Sebastião que nos salvasse do atraso e da vil tristeza a que nos condenava a ditadura. Os três F fado, futebol e Fátima – da propaganda salazarista não me diziam nada. Por isso, talvez, não era, não sou, um fervoroso da Amália Rodrigues.

A Embaixada e os consulados de Portugal promoviam atividades culturais, nomeadamente folclóricas, que visavam manter os laços com Portugal e preservar os emigrantes dos ventos da modernidade e de liberdade que iriam contaminar aquela «gente simples», «naturalmente submissa», como lhes chama com paternalismo o então embaixador de Portugal em Paris, Marcello Mathias. O medo do regime era que deixassem de o ser e renegassem a canga que lhes queriam continuar a impor, que fossem influenciados pelas organizações antifascistas, e para isso era preciso «distraí‐los, desviando assim de concentrações de carácter sindicalista e comunista». Mesmo em França, qualquer crítica ao regime era rotulada de comunismo, incluindo as organizações protestantes de apoio aos refugiados e emigrantes, como a Cimade.

Para o regime, os portugueses em França deviam ser a imagem externa do Portugal salazarista, do «bom emigrante», prolongando no estrangeiro a visão paternalista e procurando fazer dos emigrantes agentes do regime. Aos franceses, esse paternalismo fazia lembrar Pétain, aos italianos devia fazer lembrar o estatuto que o regime de Mussolini atribuía aos emigrantes. Eram tratados pela ditadura portuguesa como uma mercadoria de exportação que lhe pertencia.

Apesar de todos os esforços, o regime não conseguia impedir que os emigrantes tivessem contacto com as organizações da oposição portuguesa e com a sua imprensa clandestina, mas também com os jornais que iam sendo criados por oposicionistas ao regime.

Muitos emigrantes portugueses vinham de um país onde toda a atividade política era proibida. Mesmo a palavra «política» tinha, sobretudo nas regiões rurais do Norte de Portugal (origem da maioria dos emigrantes, 54,8% do total de emigrantes legais entre os anos de 1960 e 1969),97 uma carga negativa, mesmo antirreligiosa. Em França tinham o seu primeiro contacto com a política e a adaptação a uma realidade onde a cidadania implicava o dever cívico de participar em atos eleitorais, a que só os que obtinham a nacionalidade francesa tinham acesso, mas que acompanhavam pelos meios de comunicação social.

Mais de uma vez, quando ia vender o jornal para o grande mercado de Villiers, perto de Champigny, ouvia «não quero nada com a política». À desconfiança da política que era inculcada pelo regime juntava‐se o medo da PIDE, que em França intimidava os emigrantes, procurando impedir que fossem influenciados pela oposição.

Quando cheguei a Paris em 1969, ouvi muitos relatos das reações dos emigrantes portugueses ao Maio de 68. Hélder Costa recorda os contactos que teve e constatou «que o sentimento dominante era o medo, e não a participação no movimento. Houve um emigrante alentejano de meia idade que voltou para Portugal a pé». Manuel Dias Vaz diz‐me que na Alsácia, onde estava, muitos portugueses fugiram para Portugal, «convencidos de que os comunistas iam tomar o poder em França». Tinham crescido a ouvir a propaganda anticomunista da ditadura, dos «mata padres», e era esse o relato que o salazarismo fazia de Maio de 68.

O medo da PIDE era justificado. Apesar de viverem em liberdade, muitas das pessoas com quem falávamos queriam voltar a Portugal e temiam também as retaliações sobre as famílias que lá tinham ficado. Já os jovens que tinham fugido à tropa aderiam mais facilmente às organizações culturais ligadas à oposição e às associações de apoio aos refugiados e refratários que se foram formando.

O problema para o regime é que os emigrantes viviam em democracia e integravam‐se, pouco a pouco, numa sociedade democrática em profunda mutação e tomavam, mesmo que ainda a medo, o gosto pela liberdade e pela igualdade.

Quando finalmente se legalizavam, tinham direito à sindicalização e à vida política, sobretudo se trabalhassem nas fábricas. Tinham acesso à segurança social, a férias e a um Serviço Nacional de Saúde, em suma, às conquistas do governo da Frente Popular de 1936, reafirmadas e ampliadas em 1945.

Já os seus filhos tinham acesso ao ensino obrigatório dos seis aos dezasseis anos, onde aprendiam os princípios e valores da revolução francesa, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, que a república democrática devia garantir e que a política era uma causa nobre e essencial à vida em sociedade. Ou seja, formavam‐se cidadãos que rapidamente compreendiam que a ditadura em Portugal era uma aberração. Um ensino subversivo que o governo fascista de Lisboa gostaria de poder contrariar.

Para responder ao que considerava uma ameaça, o regime queria «criar as condições indispensáveis para assegurar o ensino da Língua e da História pátria em todos os núcleos de portugueses, sem o que tornar‐se‐á fatal o desaportuguesamento...».

A emigração para a Europa democrática representava uma autêntica revolução cultural. No contacto com a vida cultural e social francesa, inclusive nos locais de trabalho, os emigrantes portugueses descobriam não só as liberdades e garantias dos direitos como os modos de vida de uma sociedade liberal moderna. A estrutura patriarcal da «família portuguesa» era muito mais arcaica que a francesa – numa altura em que mesmo esta, abalada pelos valores da igualdade, era posta em causa. Um dia, ouvi uma mulher a responder ao marido, armado em mandão: «Isso era lá em Portugal, aqui mandamos os dois».

As portuguesas que eu encontrava em Paris não eram apenas as mulheres dos migrantes – muitas trabalhavam, uma parte significativa como domésticas ou porteiras, mas muitas também como operárias.

As mulheres e os homens tinham os mesmos rostos que se confundiam com a terra e com o que dela brotava, gente com os olhos ainda nas águas do Douro ou do Minho, muito religiosos mas com uma capacidade de se rirem dos senhores da igreja e das suas «fraquezas» por vezes criminosas. Homens que tinham sido educados para serem os patriarcas da família, mas que nas dificuldades em que se encontravam ficavam muito dependentes das suas mulheres para a sobrevivência. Portugal, apesar de lhes ter sido terra ingrata, era a «santa terrinha» onde muitos queriam voltar e à qual queriam manter‐se ligados pela sua cultura popular e os seus hábitos alimentares. A integração dos emigrantes na sociedade francesa foi difícil e lenta pela ligação ao país, mas também porque «bancos e consulados» tudo faziam para promover a nostalgia de Portugal. Os clubes, os jornais e as rádios portugueses que foram aparecendo eram, regra geral, uma forma de viver em Portugal estando em França.

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