Já tens um hobby?

Não, eu não tinha um hobby. Não, eu não desfrutava de nada como desfrutava do trabalho. Não, eu não sabia fazer nada mais a não ser trabalhar. Eu era uma workaholic “feliz”.

Foto
Megafone P3: Já tem um hobby? Steve Johnson/Pexels
Ouça este artigo
00:00
02:50

Há muitos anos, mais de dez anos, estive internada por um problema psicológico que nessa altura me roubou toda a alegria. Estava num processo de baixa (psicológica) e visitava o psiquiatra a cada 15 dias. As consultas eram frequentemente monótonas; eu não falava muito. Afinal de contas, o que ia eu dizer? O que tinha eu para contar?

Até então, eu não sabia o que era inveja. Nunca a tinha sentido: afinal de contas, se queria algo, lutava por isso, conseguindo-o, eventualmente. Mas no dia daquela consulta em que esperei a médica pacientemente na sala de espera, senti, pela primeira vez, inveja. Olhei para os pés da médica e ela tinha calçadas umas sabrinas que emulavam os sapatos de uma bailarina. Eu tinha engordado muito com a medicação e sentia-me diminuída por isso.

Naquele momento, à minha frente, a médica personificava a bailarina que eu sabia que já não podia ser. E por sentir esse futuro roubado (pela médica?), senti inveja. A médica era, aos meus olhos, uma pessoa normal, que podia ter sonhos, todos os sonhos pela frente e eu, bem… eu era só uma doente sem qualquer esperança no futuro.

Foi também nessa sessão que a médica me fez pela primeira vez uma pergunta que passaria a ser recorrente: "Já tem um hobby? Algo que goste mesmo de fazer?".

Naquela altura, a minha vida girava em torno ao meu trabalho. O meu trabalho assegurava a minha auto-estima, o meu valor e o meu sentido de propósito. Estava tudo muito bem, ou não fosse o caso de essa paixão pelo trabalho me ter levado a um esgotamento nervoso.

Não, eu não tinha um hobby. Não, eu não desfrutava de nada como desfrutava do trabalho. Não, eu não sabia fazer nada mais a não ser trabalhar. Eu era uma workaholic “feliz”.

As consultas acabavam sempre com a psiquiatra dos sapatos de bailarina a mandar-me ir ver “coisas bonitas” – como ela dizia. Museus, jardins, ver o mar..

No outro dia, encontrei um antigo cliente. Contando com mais de 80 anos, continuava a administrar a empresa que formara 40 anos antes, mesmo depois de ter de se apoiar numa bengala para se amparar e de falar com a voz arrastada – cicatrizes de um AVC recente.

Quando o vi – e já lá ia uma boa dezena de anos que não o fazia – disse-lhe para "ir ver coisas bonitas". E tenho impressão de ter sido do mais inconveniente possível. O homem olhou para mim de sorriso triste nos olhos e disse-me que só lhe ensinaram a trabalhar.

Calei-me. Não soube como explicar a maior lição que recebi, fruto de uma das vivências mais complicadas por que tive de passar um dia. Hoje escrevo, pinto, fotografo… Sou apaixonada pelos meus hobbies, pela beleza e pela vida. Tenho a certeza de que a vida é tão rica que todo o tempo é pouco para desfrutá-la inteira.

Sugerir correcção
Comentar