OE 2024: a emergência municipal em tempos de crise climática

Mais do que um reforço de verba, exige-se uma reflexão sobre enquadramento legal do Fundo de Emergência Municipal. A sua ativação não pode continuar dependente da declaração de calamidade pública.

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No debate público sobre o OE 2024 a crise climática foi esquecida por quase todos. A exceção foi o Conselho de Finanças Públicas que identificou que o "impacto de eventos climáticos extremos" e a "necessidade de medidas de mitigação e adaptação às alterações climáticas" podem levar a que os cenários macroeconómicos projetados pelo Governo para os próximos anos sejam mais negativos que os previstos.

O OE 2024 dá um importante relevo às medidas de mitigação e adaptação às alterações climáticas – com uma dotação de 3014,3 milhões de euros para política climática –, mas revela maior timidez quanto aos eventos climáticos extremos. Neste âmbito a grande medida é a atribuição de 6 milhões de euros para o Fundo de Emergência Municipal (FEM), um instrumento de apoio aos municípios em tais situações. Esta verba consegue o all in de ser simultaneamente o dobro do previsto para este ano, o primeiro aumento em três anos e o valor mais elevado desde 2010.

Mas será este esforço suficiente? Vejamos. Em 2019, só as depressões Elsa e Fabien trouxeram prejuízos de 7,7 milhões de euros, valor que equivaleu a quase 3 vezes o valor previsto para o FEM em 2019 e que foi tão alto que ainda será pago pelas verbas do OE 2024. O incêndio da Serra da Estrela em 2022 teve impactos de mais de 10 milhões de euros, que esgotaram a totalidade do FEM desse ano, continuando também a ser pagos pelo OE 2024. A história repetiu-se nas inundações de 2022 e do início deste ano, que trouxeram impactos totais de 118 milhões de euros que o Governo comparticipou em 48 milhões de euros, valor 8 vezes acima da soma das dotações totais do FEM nos OE 2022 e OE 2023.

Estes exemplos demonstram um fenómeno de suborçamentação crónica do FEM, que todos os anos obriga o Governo, perante eventos climáticos extremos, a ter de esgotar a totalidade das verbas deste fundo e de aprovar ad hoc programas de apoio financeiro que mais não são de que um FEM com outro nome.

Esta corrida atrás do prejuízo anualmente repetida não é aceitável. Ainda para mais quando é sabido que o nosso país está numa zona de maior vulnerabilidade aos efeitos adversos das alterações climáticas e que isso inclusive levou a que, conforme refere a Comissão Europeia, entre 1980 e 2020 perdêssemos 5% do nosso PIB apenas devido a eventos climáticos extremos.

Mais do que um reforço significativo de verba, exige-se uma reflexão profunda sobre enquadramento legal do FEM, intocado há seis anos. Tal reflexão tem necessariamente de assegurar uma verba estável e com uma robustez condizente com as crescentes exigências financeiras associadas aos eventos climáticos. A sua ativação não pode continuar dependente do espartilho da declaração de calamidade pública, deve ser flexibilizada tal como já prevê o OE 2024.

Os municípios devem ser chamados à responsabilidade e passar a ter os seus próprios Fundos de Emergência Climática. Tem de se trazer mais realismo ao FEM, alargando os danos cobertos para além das infraestruturas municipais e passando incluir, também, as infraestruturas das freguesias e o financiamento de medidas de apoio às populações e empresas, como sejam a concessão de auxílios financeiros extraordinários, a requalificação de imóveis e infraestruturas privadas, criação de hospitais de campanha ou programas de alojamento temporário – despesas que devem, aliás, ser também excecionadas dos limites de dívida municipal.

As inundações deste ano mostraram bem o papel que os municípios podem ter no apoio às populações e às empresas num contexto de calamidade. Esse apoio é vital quando sabemos que a maioria dos seguros de imóveis adquiridos com recurso a crédito não cobre situações de catástrofe natural – por exemplo, só 16% tem cobertura de risco sísmico.

Pela sua frequência crescente os eventos climáticos extremos vão estar no centro do debate dos próximos anos, pelo que adiar esta reflexão é hipotecar o nosso futuro e comprometer o equilíbrio das contas públicas de amanhã.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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