Espanha, com albufeiras reduzidas a charcos, quer a água do Alqueva para Huelva e Doñana

Desesperados, produtores de Huelva querem “a partilha temporária dos direitos de água da barragem de Alqueva” para regar explorações e Doñana. Apelam à reciprocidade e boa vontade de Portugal.

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Esgotadas as possibilidades de acesso à água para o regadio que se pratica na região de Huelva, a solução para o défice hídrico na região do Sul de Espanha encontra-se agora na grande barragem do Alqueva GettyImages
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No início de Outono mais quente da história, tempo de sementeiras das variedades de morango na região de Huelva e sem perspectivas de muita chuva no curto prazo, a água disponível para o regadio não chega para as encomendas. Aconteceu o que já se esperava que acontecesse: associações de produtores e exportadores e líderes políticos regionais apelaram ao Governo espanhol para que solicite a Portugal a “transferência temporária de água da barragem de Alqueva”.

Em resposta ao PÚBLICO, o gabinete de comunicação do Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) disse que até à data “não foi recebido qualquer pedido” ou contactado pelas autoridades espanholas para autorizar o envio de 100 hm3 para Huelva, embora tenha conhecimento de que o volume de água pretendido “tem sido referido em órgãos de comunicação social de Espanha”.

Contudo, reconheceu ainda o ministério tutelado por Duarte Cordeiro, “Portugal tem em curso com Espanha uma negociação para a definição do regime de caudais na secção de Pomarão no rio Guadiana”.

Os produtores de fruta na região de Huelva receiam que os cortes de água para rega atinjam 50% da média utilizada na campanha anterior. A única alternativa que vêem está na albufeira de Alqueva. O desespero dos produtores de frutos vermelhos (morangos, framboesa, mirtilos e amoras), frutas cítricas, melões e frutas tropicais, ouviu-se na feira Fruit Attraction que decorreu em Madrid entre 3 e 5 de Outubro. Um produtor de mangas gritou: “Água, água, água”, titulava a Agência EFE.

O grau de consternação que atravessa todo o sector frutícola espanhol é confirmado pela Agência Meteorológica do Estado (Aemet), ao destacar nas suas informações mais recentes que é nas bacias do Guadalquivir, rio Tinto-Odiel-Piedras e do Guadiana que se observam as consequências mais nefastas de uma seca prolongada que não tem paralelo desde 1961.

A falta de água prenuncia uma seca meteorológica de longa duração e recursos hídricos cada vez mais escassos, realidade que está patente nos níveis de armazenamento médio das barragens espanholas: apresentam níveis de água assustadores, abaixo dos 36% da sua capacidade, e no Sul de Espanha reduziu muitas albufeiras à condição de charco.

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Estufas para cultivo de morangos na província de Huelva, Espanha GettyImages

Parte da solução para o desespero dos vizinhos espanhóis estará do lado de cá. A Agência Europa Press destacou a intervenção do presidente da Associação de Produtores e Exportadores de Morango de Huelva (Freshuelva), Francisco José Gómez, e do presidente do Partido Popular de Huelva, Manuel Andréz González, que apelaram ao Governo espanhol para que solicite a Portugal a “transferência temporária de água da barragem de Alqueva.”

O dirigente do PP de Huelva, acrescenta a Europa Press, referiu durante um recente encontro com autarcas da região que, nas actuais circunstâncias, a “cooperação hispano-portuguesa é a solução mais viável a curto prazo para o problema da seca”. E comparou o volume de armazenamento (68%) em Alqueva, “a maior albufeira da Europa ocidental”, com os níveis actuais nas albufeiras das barragens do Chança (38%) e de Andévalo (25%), as duas maiores reservas de água da região de Huelva.

A substancial diferença nas reservas de água tem permitido ao Alentejo “resistir à seca enquanto a província de Huelva está a sofrer” os dramáticos efeitos da escassez, acentuou Manuel Andréz González.

A alternativa preconizada pelo dirigente do PP é a que resta depois de o Governo espanhol ter “bloqueado” a construção da barragem de Alcolea, “uma obra que não avançou um metro nos últimos cinco anos”, critica González. E como é necessário e “urgente” encontrar uma solução, “a partilha temporária dos direitos de água da barragem de Alqueva para abastecer com cerca de 100 hectómetros cúbicos a bacia de rio Tinto-Odiel-Piedras” é o caminho a seguir.

Também o presidente da Freshuelva, Francisco José Gómez, na sequência do encontro que manteve com o ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação espanhol, Luis Planas, na feira Fruit Attraction em Madrid, instou o governante a estudar a possibilidade de Huelva “receber contribuições extras de água através da albufeira de Alqueva”. Diz que “é uma possibilidade em aberto”, recordando que a construção da barragem portuguesa deixou em aberto uma premissa: “A possibilidade de Espanha também poder utilizá-la ocasionalmente.”

A campanha do morango já começou na província de Huelva com o plantio de variedades precoces. O resto da plantação continuará ao longo do mês de Outubro. A Freshuelva adianta, na sua página online, que na campanha 2022/2023 foram produzidas um total de 243.310 toneladas de morangos em plantações que cobrem uma área com mais de 6300 hectares. Para além do morango, a última campanha registou a produção de 47.750 toneladas de framboesa, 53.190 toneladas de mirtilos e 2000 toneladas de amoras silvestres. As exportações superaram os mil milhões de euros, um volume de negócios que está ameaçado com a falta de água.

Acontece que a campanha 2023/2024 arrancou com um corte no uso de água, devido à seca, de 25% e com a indicação de se estender esta diminuição até 50%. Perante a ameaça que paira sobre o sector de frutos vermelhos, “é hora de trabalhar” a transferência de água vinda de Alqueva a partir do sistema de captação que Espanha designa de Boca Chança, instalado na confluência com o rio Guadiana, considerou o presidente da Freshuelva.

“É uma questão de reciprocidade”

O país vizinho que lidera a nível europeu a produção de frutas e vegetais e é o segundo maior exportador mundial, depois dos Estados Unidos, está a viver um momento “angustiante” com a falta de água para rega, pelo peso que o sector tem na economia espanhola.

Só a região de Huelva tem cerca de 40 mil hectares de áreas irrigadas e até o Parque Nacional de Doñana já foi sacrificado com 2 mil hectares de plantações ilegais de morangos. A ameaça de extinção deste ecossistema deriva do uso da água das lagoas desta reserva natural que se encontra envolvida por uma extensa área de regadios com cerca de 108 mil hectares e da intensificação da actividade humana.

A escassez de água no Sul de Espanha está directamente associada à superexploração através do regadio. No país vizinho, irrigam-se diariamente 3,8 milhões de hectares, actividade que “está a esgotar a água e a aproximar-nos da beira do precipício”, antecipa a Greenpeace.

Esgotadas as possibilidades de acesso à água para o regadio que se pratica na região de Huelva, a solução para o défice hídrico na região do Sul de Espanha encontra-se agora na grande barragem do Alqueva.

O próximo dia 30 de Novembro completam-se 25 anos da assinatura do Tratado ou Convenção de Albufeira entre Espanha e Portugal, que regula a protecção e o uso sustentável das águas das bacias hidrográficas dos rios partilhados entre os dois países (Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana). Os respectivos governos anunciaram em Setembro de 2022 a revisão do acordo, forçados pela seca extrema que a Península Ibérica tem sofrido nos últimos anos.

Um documento da Região Autónoma da Andaluzia, consultado pelo PÚBLICO, faz referência a uma intervenção de Juan Saura, ex-diretor da Confederação Hidrográfica do Guadalquivir, na Comissão de Desenvolvimento do Parlamento da Andaluzia, no passado mês de Junho, onde disse “acreditar” na boa vontade de Portugal em aprovar o envio de água para o regadio de Huelva e de Doñana.

É uma questão de “reciprocidade”, salientou o especialista espanhol, recordando “os serviços que Espanha presta ao país vizinho (Portugal) ao prevenir inundações com o seu sistema de barragens que regulam o caudal dos rios transfronteiriços no caso de tempestades”. Desta forma, o Governo português “deveria permitir a captação de água (cerca de 100 hm3 por ano, dependendo da precipitação de cada ano) no curso inferior do rio Guadiana para recarregar o aquífero de Doñana”. O especialista espanhol alega que devido às alterações climáticas, o Parque Natural “sofrerá um défice hídrico anual de 36 hm3 a partir de 2039”.

O ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, afirmou em Janeiro deste ano, durante uma intervenção na comissão parlamentar de Ambiente, que Portugal “não está disponível para rever a Convenção de Albufeira”, mas “empenhado” na sua melhoria. Numa renegociação, Portugal sairia sempre prejudicado", admitiu o governante Duarte Cordeiro.

Como refere o Boletim Oficial de Espanha (BOE), neste momento estão prestes a avançar as obras de ampliação do túnel de São Silvestre com cerca de 7260 metros, infra-estrutura que visa aumentar a capacidade de transporte do túnel actual, para fazer a ligação hidráulica entre as albufeiras do Chança-Andévalo e Pedras, ou seja, entre a bacia do Guadiana e a de Pedras, e terá uma capacidade de descarga de 20 metros cúbicos por segundo.

O projecto prevê que os trabalhos estejam concluídos dentro de 30 meses. As águas captadas na tomada de Boca Chança serão encaminhadas através do túnel de São Silvestre para Huelva.

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