Saúde mental: a casa de todos os direitos

O estigma deve ser combatido em todas as oportunidades, porque é uma importante barreira à obtenção de cuidados de saúde mental. Infelizmente, não é a única.

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"A disponibilidade de cuidados de saúde mental acessíveis a toda a população está cada vez mais comprometida" Emma Bauso/Pexels
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Quando alguém toma a iniciativa de procurar uma consulta de psiquiatria é porque suspeita que algo não está a correr bem com o seu estado mental. Depois de uma longa primeira conversa é frequente chegar a um diagnóstico, mesmo que preliminar, que vai guiar a investigação clínica subsequente e servir de base à intervenção terapêutica mais adequada.

Tenho por regra explicar a quem me procura quais foram os dados da história que me contou e quais as informações retiradas do que observei durante a consulta que me levaram a concluir que um certo diagnóstico está provavelmente presente. Para muitas pessoas, dar um nome ao que estão a sentir representa um alívio, porque ajuda a compreender um estado que não é o seu normal e que na maior parte das vezes se associa a um grande sofrimento. Significa ainda uma esperança, porque havendo um diagnóstico pode também haver um tratamento, e, com ele, uma diminuição da dor.

No entanto, não há semana em que pelo menos um doente não me diga, quando lhe é comunicado o diagnóstico: “Mas tem mesmo a certeza de que eu tenho uma doença?”, “não acha que isto pode ser só uma fase?”, “não será melhor esperar mais um tempo para ver se isto passa sozinho?”.

Esta reação a um diagnóstico e a uma proposta de tratamento, aparentemente paradoxais em alguém que acabou de procurar uma consulta por achar que o que está a sentir pode resultar de uma doença mental, resumem-se a uma palavra: estigma. O estigma pode representar desconhecimento, mas também está culturalmente enraizado, mesmo nos mais informados. Essas ideias erradas recaem sobre os diagnósticos — ter doença mental ainda é visto como ser “maluquinho”, “não jogar com o baralho todo”, “ter um parafuso a menos” ou, em alternativa “ser fraco de espírito” e “ter muito tempo livre para pensar no que não interessa“ —, e reveste também os tratamentos, sejam psicoterapêuticos ou farmacológicos — “para quê ir fazer psicoterapia, se para conversar tenho os meus amigos?” ou “não vou tomar medicamentos, não quero depender de químicos para ser feliz, quero manter a minha liberdade!”.

E se essas dúvidas e receios existem mesmo naqueles em que a suspeita de uma doença mental é suficiente para procurar uma consulta de psiquiatria, imaginemos então quantas pessoas não procurarão sequer um psiquiatra ou outro profissional de saúde mental pelo mesmo tipo de pensamento. O estigma deve ser combatido em todas as oportunidades, porque é uma importante barreira à obtenção de cuidados de saúde mental. Infelizmente, não é a única.

De acordo com os últimos dados da Eurostat, atualizados em Novembro de 2021, Portugal era o segundo país (depois da Hungria) com maior percentagem de necessidades de saúde não atendidas (34%), estando em primeiro lugar no que diz respeito às necessidades que não são atendidas por motivos financeiros (25,6%) ou por lista de espera (29,5%). Este último dado está em linha com a informação revelada pela Entidade Reguladora da Saúde de que, em 2023, 45% dos utentes ultrapassam os tempos médios de resposta garantida definidos para o SNS.

Trata-se de uma significativa deterioração no acesso aos cuidados de saúde mental, já que, em 2021, 93% das consultas de psiquiatria respeitavam os tempos. Em termos práticos, isto significa que em alguns hospitais é necessário esperar quase um ano por uma consulta de especialidade. O problema não se fica por aí, porque o acesso aos cuidados de saúde primários, primeira linha no tratamento das doenças mentais (como de todas as outras, aliás) é cada vez mais difícil, com o número de portugueses sem médico de família a exceder neste momento os 1,7 milhões.

Por outras palavras, a disponibilidade de cuidados de saúde mental acessíveis a toda a população está cada vez mais comprometida — e essa é uma importante barreira à obtenção de cuidados para todos, mesmo para aqueles em que o estigma não é um obstáculo. É por isso da maior pertinência o tema definido pela World Federation of Mental Health (WFMH) e Organização Mundial de Saúde (OMS), para a comemoração deste ano do Dia Mundial da Saúde Mental, a 10 de Outubro: “A saúde mental é um direito humano universal.”

Este é um lema pelo qual vale a pena lutar. Implica combater o estigma, informando todas as pessoas sobre o que são as doenças mentais e os seus tratamentos, para que ninguém deixe de procurar ajuda quando está a sofrer. Implica também aumentar o acesso aos cuidados de saúde mental, tomando todas as medidas políticas necessárias para que todos os que necessitem de cuidados de saúde mental os recebam.

Porém, fazer da saúde mental um direito universal vai muito para além disso — é obrigatório para a prossecução de uma melhor saúde em todas as áreas e para o nosso bem-estar social e relacional. Mas significa ainda mais. Ter uma boa saúde mental permite exercer todos os outros direitos humanos universais — a começar pela liberdade. Estar mentalmente doente é estar numa prisão invisível que nos impede de viver a nossa vida normalmente, de desenvolver relações saudáveis e gratificantes, de ter acesso às nossas capacidades intelectuais por forma progredir na educação e no trabalho. Impede-nos de pensar como gostaríamos e de expressar o melhor possível esses pensamentos. Por tudo isso, a saúde mental tem de ser um direito humano universal. Porque lutar pela saúde mental é lutar pela liberdade.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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