O património cultural e os equívocos do localismo

Tudo se resume naquilo que Torga já observara, ao dizer que “o universal é o local sem paredes”. Localismo e centralismo são precisamente as paredes que nos impedem de ver o quadro todo.

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A propósito da possível trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, contrariando a ideia, entendeu Paulo Reis Mourão, professor de economia da Universidade do Minho, denunciar neste jornal aquilo que chamou de "tiques centralistas no património nacional". Pelo meu lado e não me querendo aqui pronunciar sobre tão apaixonante quanto macabro enredo queirosiano, onde as ossadas do Raposão se convertem elas mesmas em relíquia, tomei especialmente nota de passagem em que o articulista se refere nos seguintes termos a colecções do Museu Nacional de Arqueologia (MNA), que servi durante décadas e de que cheguei a ser director: “O turista fica mais enriquecido ao passear pelos berrões depositados no MNA em passo de corrida ou ao realizar um périplo de vários dias de roteiro regional onde eles existiam há 200 anos (e onde as comunidades os conservavam desde há séculos)?”

A tese geral ilustrada pelos berrões é a de que o património cultural deve ficar onde foi criado (ou abandonado, suponho), porque é mais democrático, serve melhor o turismo e com ele a economia (suponho também) – e com ela tive de me confrontar durante décadas. Vejamos, então e de novo.

Postular que um castelo, um castro ou uma anta devam ficar onde se conservam ou apenas jazem constitui como que arroubo lapalissano. Mas alargar tal demanda aos bens móveis provenientes desses sítios tem muito mais que se diga e merece ser escalpelizado. Do mesmo modo, defender que todos esses bens, imóveis e bens móveis, devem ser valorizados socialmente constitui outro truísmo. O problema é o busílis que vem depois: como, onde e com que finalidades?

No plano estritamente económico-financeiro, a oposição entre os ganhos imediatos resultantes das centenas ou milhares de visitantes em sítios particulares e os que decorrem da justa redistribuição nacional daqueles que são gerados pelos muitos milhões que acorrem a centros monumentais e museológicos como o de Belém, por exemplo, onde se situa o MNA (e está em vias de beneficiar de uma quase refundação, no âmbito do PRR), esta oposição constitui um exercício de autoflagelação um tanto provinciano, quiçá estulto e sobretudo inútil. Todos, local, regional e nacional são necessários para o desenvolvimento do País – e também para turistas, que todavia nos deveriam interessar menos do que o bem-estar das populações.

Mais interessante será a análise técnica de benefícios e custos neste domínio. Há mais de quatro décadas, identifiquei, entre outros, as seguintes vantagens da conservação patrimonial in loco: contacto empírico imediato com os vestígios do passado e o seu entorno, possibilidade de “recriações” históricas e ambientais, re-funcionalização de espaços antigos e desenvolvimento local. Mas registei também algumas desvantagens: dificuldade de conservação dos vestígios e impacte negativo dos visitantes, sobretudo do turismo de massas, reconstruções pesadas e discutíveis, difíceis acessos e sobretudo a ilusão de “ver o passado tal como era", uma infantilização colectiva que poderia chamar de “síndrome do mundo Disney", ou seja, a captura da história e da sua complexidade pelo espectáculo da fast-food e dos luna-parques.

Estas desvantagens constituem, em imagem de espelho, as vantagens dos museus: contacto com o original em condições ideais de fruição (iluminação, informação, etc.), elaboração de visões de síntese, boa localização e prestação de serviços complementares (desde laboratórios e bibliotecas até lojas e restaurantes). Todavia, os museus apresentam também as suas fraquezas, entre as quais as da descontextualização ou acumulação de colecções, tanto em exposição como em reservas.

Existem, pois, prós e contras técnicos nestas opções. Mas não nos iludamos: a grande questão não é técnica, nem económico-financeira ou muito menos turística: é cívica ou política, se se preferir.

Pretender que é "mais democrático" deixar tudo onde existiu ou simplesmente foi encontrado constitui um tremendo equívoco, para não dizer um logro. Imaginem-se os tais berrões todos nos castros de origem, nos adros das igrejas paroquiais ou na casa dos proprietários das terras, para onde hipoteticamente teriam sido transportados. Imaginem-se assim também as placas e báculos dos monumentos megalíticos, as estátuas romanas, etc., etc. E imagine-se finalmente o gosto de transmontanos, alentejanos ou minhotos, jovens em idade escolar, adultos excursionistas de sociedades recreativas ou idosos de centros de dia, em conhecerem a nossa história, neste caso aquilo que (mal ou bem) se tem designado por cultura castreja, megalitismo e romanização. É mais democrático dizer-lhes que se limitem a ver o que têm perto de si ou então se façam turistas e andarilhem por esse país fora, construindo no final por eles as sínteses que conseguirem? Ou não será mais democraticamente responsável dizer-lhes que aproveitem bem os sofridos euros que conseguem reunir para talvez apenas uma ou duas viagens por ano, e combinem idas a locais mais emblemáticos com deslocações a museus, onde verão peças de muitas origens postas ao serviço do conhecimento global, que quer dizer também da emancipação cidadã?

Dir-se-á que, então, a haver deslocação para museu, que seja também somente no plano local – o que se afigura na aparência muito razoável e deve ser a opção em muitos, talvez a maioria dos casos. Mas levar-se-á a intenção ao ponto de fazer dela consigna, adaptando quiçá a máxima maoista: “que mil museus floresçam”, pouco cuidando de saber da sua qualidade e sustentabilidade? E que museus? De sítio, de aldeia, de freguesia… já não talvez de concelho, onde as peças teriam de ser deslocadas porventura dezenas de quilómetros, sendo subtraídas aos vizinhos. Certamente menos ainda regionais… e de todo não nacionais.

Depois perguntar-se-á que mensagens apresentar nesses mil museus locais? No Museu de D. Diogo de Sousa, por exemplo, falar-se-á dos empórios comerciais fenício-púnicos ou na estrutura do povoamento Lusitânia? Inversamente, no Museu de Alcácer do Sal discutir-se-á a criação ex-nihilo, ou não, de cidades como a Augusta Braga ou complexos termais como os dos Flávios, que estão na origem da própria designação de Chaves? Claro que não, sendo caso para dizer “cada museu no seu galho". Só nos museus de âmbito regional e nacional farão sentido as mensagens de âmbitos mais alargados, servidas por colecções provenientes dessas dezenas ou centenas de sítios.

Chegados aqui, falta acrescentar o mais importante talvez: falta assumir que a floresta do património cultural está cheia de árvores com galhos e ramos variados, uns de maior calibre e mais próximos dos troncos, outros mais afastados deles. Alguns troncos distinguem-se como realidades nacionais. Nós, que constituímos um dos mais antigos Estados-Nação europeus, bem os identificamos: e enquanto nos auto-representarmos como portugueses, desejaremos também possuir arquivos, bibliotecas, teatros, monumentos e… museus nacionais. Mais ainda: não depreciaremos muitos de nós as árvores internacionais, estejam elas onde estiverem, porque se compõem por monumentos e museus que fazemos também nossos, já que os entendemos como “marcadores de civilização”, expressões de uma humanidade indivisível. Tudo se resume afinal naquilo que Torga já observara, ao dizer que “o universal é o local sem paredes”. Pois é. Localismo e centralismo são precisamente as paredes que nos impedem de ver o quadro todo.

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