Iraquianos acusados de terrorismo sem defesa depois de advogado renunciar em protesto contra julgamento

Prazo para a prisão preventiva termina em Março. Juíza não admitiu renúncia de advogado sem que fosse garantida a defesa por outro mandatário escolhido e prosseguiu o julgamento.

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O julgamento realiza-se no Campus de Justiça em Lisboa Daniel Rocha
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O advogado de defesa Vítor Carreto renunciou, nesta quarta-feira, a ser mandatário dos dois irmãos iraquianos acusados de adesão a organização terrorista, em protesto contra o desenrolar do processo que diz não garantir os direitos dos arguidos e, ainda, contra a justiça portuguesa, que acusa de "estar ao serviço" dos Estados Unidos.

Desde que Ammar e Yassir Ameen foram acusados, em Setembro de 2022, de um crime de adesão a organização terrorista e também, respectivamente, de nove e oito crimes de guerra contra as pessoas "em concurso aparente com o crime de terrorismo internacional”, Vítor Carreto tem associado este processo a uma intenção política de o Ministério Público ver os dois arguidos condenados, não pela existência de provas, diz Carreto.

No entender do advogado, Portugal pretende "mostrar serviço" aos Estados Unidos com o Ministério Público a protagonizar um grande caso mediático de terrorismo, no contexto geopolítico que se seguiu ao derrube do antigo Presidente Saddam Hussein pelas tropas da coligação internacional, liderada pelos Estados Unidos. A captura e morte de Hussein em 2006 resultou, muitos anos depois, no domínio parcial do território pelo grupo terrorista Daesh.

A cidade de Mossul, onde residiam os dois irmãos, esteve sob controlo deste grupo, autodenominado Estado Islâmico, entre Junho de 2014 e Julho de 2017. Os dois irmãos chegaram a Portugal vindos da Grécia, ao abrigo do Programa de Recolocação de Refugiados da União Europeia, em Março de 2017, mas, segundo o seu relato, terão fugido do Iraque em 2015, passando por vários países antes de chegarem a Portugal com o estatuto de refugiado.

Ammar Ameen, um dos irmãos acusados e presos na cadeia de alta segurança de Monsanto desde Setembro de 2021, viu recusado o seu pedido de se suspender o julgamento até ter nomeado um novo advogado da sua escolha, e anunciou que entraria, de novo, em greve de fome (perante esta recusa da juíza), depois de ter cumprido cinco dias de greve de fome no início deste mês.

Depois de chamar uma defensora oficiosa, que os arguidos recusam como sua representante e relativamente à qual se opõem a que tenha contacto com o processo, a juíza presidente, Alexandra Veiga, deu ordem para a audiência prosseguir, colocando o ónus do prejuízo causado aos arguidos no seu próprio advogado. Segundo invocou a magistrada, e nos termos da jurisprudência e legislação em vigor, o advogado, para renunciar, teria de garantir que os arguidos estariam representados nos 20 dias subsequentes à recusa, anunciada na primeira hora da audiência e sem aviso.

Os dois arguidos encontram-se em prisão preventiva há mais de dois anos (desde Setembro de 2021). Disso mesmo já tinha dado nota a juíza num despacho junto ao processo no qual recordava a existência de vários incidentes de recusa apresentados pelo advogado tanto na 1ª como na 2ª instância, e lembrava que o prazo máximo da prisão preventiva, neste processo de especial complexidade, termina no próximo dia 2 de Março de 2024.

Assim, e apesar de o advogado Vítor Carreto abandonar a sala depois de anunciar os motivos da renúncia, teve início, ainda de manhã, a audição das primeiras testemunhas de acusação, sem que estivessem presentes o advogado ou os próprios acusados, Ammar e Yassir Ameen, depois de as testemunhas arroladas pela acusação pedirem para depor apenas na ausência dos acusados.

Tanto a assistente social do município de Oeiras como a funcionária do Conselho Português para os Refugiados que contactaram com Ammar e Yassir aquando do acolhimento destes em Portugal, salientaram, enquanto testemunhas, a natureza instável e "desagradável" da personalidade de um dos irmãos e a atitude conciliadora do outro. Da parte da tarde, foi ouvida a namorada de Ammar, arrolada pela defesa.

Advogado tinha de garantir a defesa dos arguidos

A juíza disse não haver dúvidas quanto à necessidade de o advogado garantir o patrocínio dos seus arguidos, em caso de renúncia. E não tendo esse pressuposto sido seguido, nomeou uma defensora oficiosa. Perante o protesto de Ammar, a magistrada indicou que o advogado, em representação do arguido, teria de recorrer da decisão.

"O arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo, mas não lhe pode ser atribuído o poder de bloquear o andamento do julgamento. Por isso, o tribunal nomeia desde já um defensor", concluiu Alexandra Veiga.

Ainda antes de abandonar a sala no edifício principal do Campus de Justiça, para onde foi destacada uma dezena de elementos armados do GISP (Grupo de Intervenção e Segurança Prisional), e depois de uma brevíssima exposição introdutória na qual repetiu que não estavam reunidas as condições de defesa dos seus constituintes, Vítor Carreto deu como exemplo o facto de os arguidos estarem impossibilitados, até ao momento, de verem e ouvirem as gravações dos depoimentos registados para memória futura das testemunhas que os acusam no Iraque de terem agido contra si em representação do grupo terrorista, Daesh ou autoproclamado Estado Islâmico. Os arguidos também contestam não terem autorização para receber ou enviar correspondência do Estabelecimento Prisional de Monsanto.

Não foi a primeira vez que Vítor Carreto abandonou a audiência. Também no debate instrutório que culmina a fase facultativa em que a defesa tenta que o caso seja arquivado sem ir a julgamento, os dois arguidos ficaram sozinhos, recusando, nas circunstâncias, prestar as declarações "em sua defesa" que vinham preparados para prestar, como referiram na ocasião em Dezembro de 2022.

A juíza de instrução Gabriela Lacerda Assunção manteve então os 990 pontos da acusação e rejeitou “todas as questões prejudiciais” que o advogado Vítor Carreto queria então ver apresentadas ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Entre essas questões estava o facto de terem sido autorizadas escutas telefónicas “sem limite temporal” aos dois arguidos, bem como a vigilância de todos os seus movimentos ao longo de quase cinco anos.

Actualmente, a principal objecção da defesa prende-se com a apresentação de provas do Ministério Público, ou seja, às 46 horas de gravações que, por um lado, os arguidos têm o direito a ouvir para se defenderem, como salientou a própria juíza, e que, por outro, ainda não o fizeram por não estarem autorizados a receber correspondência na prisão, ou quaisquer CD de gravações.

Uma hora de gravações por dia

Fora sugerido que os acusados ouvissem, em cada dia de audiência marcada para as 9h30, uma hora de gravações, a partir das 8h30, até perfazerem o total das 46 horas – o que, de acordo com o advogado, e existindo dezenas de horas de testemunhos relativamente aos quais têm de preparar a defesa, não iria garantir os direitos dos arguidos.

"Foram cinco anos de investigação", disse Vítor Carreto, referindo que nenhum dos pedidos apresentados por si, em nome de Ammar e Yassir Ameen, tinha sido cumprido para que pudessem defender-se, e que ao Ministério Público "tudo foi permitido".

Os dois homens, de 34 e 36 anos, começaram a ser investigados pela Polícia Judiciária em Setembro de 2017, dois meses depois de o SEF ter alertado a Unidade de Coordenação Antiterrorista das suspeitas que recaíam sobre os dois de terem pertencido ao autoproclamado Estado Islâmico ou Daesh. Não cometeram crimes de terrorismo em Portugal, mas foram investigados por alegados crimes num outro país, no âmbito da competência internacional para a investigação do Estado português, uma vez que estavam a residir em Portugal quando foi lançado o alerta internacional da sua eventual pertença ao Daesh.

Ainda com o advogado presente, a procuradora do Ministério Público disse, nesta quarta-feira de manhã, que os crimes ficariam provados neste julgamento, com a prova documental, pericial e testemunhal disponível. Além das declarações para memória futura, está prevista a audição de testemunhas por videoconferência a partir do Iraque.

De acordo com o processo, estas testemunhas, de famílias iraquianas de Mossul, responsabilizam Ammar e Yassir de perseguições e agressões quando estes agiriam em representação do Daesh enquanto elementos pertencentes à polícia religiosa e aos serviços de informação deste grupo terrorista, segundo alegam. As acusações remontam a 2015 quando tanto as testemunhas, que agora os acusam, como os dois irmãos, que estão acusados, residiam em Mossul conquistada pelo Daesh em 2014.

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