Uber: maravilhoso velho mundo novo

Um motorista que dorme na bagageira do carro porque não tem dinheiro para um quarto não é sinal de progresso, é a prova da barbárie.

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O caso é insólito, é certo, mas está longe de ser a exceção no mundo do trabalho através de plataformas digitais: dentro da mala de um TVDE um polícia encontrou… um segundo motorista. Ao que parece, os dois homens revezavam-se: enquanto um conduzia, o outro dormia na bagageira. Viviam naquele carro que era também o instrumento do seu trabalho.

Seriam vítimas de máfias de tráfico de seres humanos que, em Portugal, operam também em setores dominados por plataformas digitais. Não será por acaso. A ultraprecariedade que se vive nestes setores não é uma exceção atribuível a máfias; ela é a norma que torna este setor permeável a todo o tipo de explorações.

Motoristas que passam 14 ou mais horas por dia na rua, que fazem jornadas semanais de 70h, que almoçam, jantam e dormem nos carros não são difíceis de encontrar. Condutores que se endividaram para trabalhar e que quanto mais trabalham mais pobres estão são muitos. Contas falsas, intermediários, aluguer de veículos à semana, alugueres de contas, etc. Tudo isso é sabido; tudo isso faz parte desta economia.

Como demonstrado na investigação Uber Files, as empresas tipo Uber, no momento de entrada num mercado, tendem a praticar remunerações mais elevadas para atrair trabalhadores e consumidores. Uma vez instaladas, cortam os rendimentos dos trabalhadores e aumentam as suas próprias comissões (no fundo, a costumeira mais-valia do mais típico capitalismo). Os trabalhadores começam a ter de trabalhar cada vez mais horas, alguns não conseguem sequer suportar os custos da atividade.

Tive a oportunidade de entrevistar motoristas que me relataram essa dura realidade. Um deles contou-me como, por causa da pandemia, acumulou dívidas atrás de dívidas, inclusivamente às finanças; contou como, por causa disso, teve de se desfazer da sua casa e de muitos dos seus bens. Ficou com a carrinha, na qual continuava a trabalhar o máximo de horas que podia para pagar tudo o que tinha em dívida.

Porque é que isto acontece? Porque o negócio da Uber e das plataformas tipo Uber não é a tecnologia; é a precarização total e absoluta do trabalho.

Não é por acaso que a Uber, no seu relatório anual referente a 2022, identifica como um dos maiores riscos à sua atividade a possibilidade de classificação dos motoristas como trabalhadores dependentes. Estima-se que o simples facto de não assumir nenhuma responsabilidade perante estes motoristas – contribuições para a segurança social, pagamento de horas extraordinárias, férias, baixas por doença, etc. – reduza em 20% a 30% o custo da atividade. Ou seja, a precarização é parte integrante desta economia.

Acresce que o próprio endividamento (e privação financeira) imposto aos trabalhadores é utilizado em proveito das empresas. Os trabalhadores veem-se obrigados a trabalhar cada vez mais horas, a aceitar todos os serviços, mesmo os que não lhes são favoráveis. É uma disciplina da fome que garante mais produtividade e para a qual é preciso que haja uma desproteção total e absoluta dos trabalhadores.

O maravilhoso mundo novo destas tecnológicas é tão velho como o capitalismo mais selvagem. Um motorista que dorme na bagageira do carro porque não tem dinheiro para um quarto não é sinal de progresso, é a prova da barbárie. E a economia de plataformas é responsável por terem criado o contexto em que tal se tornou possível.

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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