O ruído na política

O espaço de intervenção dos atores políticos obrigou-os a acotovelarem-se para ganhar audiência. Quase só existe o que faz muito ruído e o que os media noticiam.

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O ruído está a tomar conta da luta política. Quase só existe o que faz muito ruído e o que os media noticiam. Nos partidos que governaram o país nos últimos 48 anos, a imagem que pretendem passar é a de uma oposição permanente entre eles, salvo o compromisso de fidelidade à NATO e à UE; os interesses portugueses diluem-se nesta fidelidade.

Por outro lado, é interessante verificar que no plano comunicacional essa chinfrineira esconde, por exemplo, que a maioria das decisões da AR tem os votos favoráveis do PS e do PSD.

Como a globalização e as diretivas da UE limitaram bastante as possibilidades das opções políticas de fundo, torna-se necessário aumentar o volume dos decibéis para que as gritarias apareçam como diferenças. Neste domínio, o Chega já descobriu o filão.

O espaço de intervenção dos atores políticos obrigou-os a acotovelarem-se para ganhar audiência.

PS e PSD empurram-se mutuamente. O PS empurra o rival para a direita. O PSD, o PS para a esquerda. Na sua histeria anticomunista, Montenegro acusou o PS, a propósito da Lei da Habitação, de ser comunista. Bastou ler algo que contrariava num ou noutro aspeto os interesses dos senhorios (prédios devolutos) para vir em gritaria acusar o PS de práticas bolchevistas.

À esquerda, PCP e BE fazem de conta que o outro não existe para ver se de facto, deixando de existir, permitirá a um deles sentar-se nas cadeiras vazias. Uma verdadeira lição de sectarismo, tendo em atenção os valores que cada um defende.

No plano interno partidário, praticamente ninguém vai por militância a reuniões para participar na definição das orientações dos partidos respetivos. Os partidos tornaram-se máquina de mobilização de fidelíssimos militantes, simpatizantes e interessados.

Para os grandes e verdadeiros problemas –​ pobreza, saúde, educação, habitação, justiça, desertificação e inverno demográfico – constata-se que a luta se trava através de um inumerável rosário de acusações, sem apresentar programas concretos que mostrem onde estão as diferenças. As diferenças assentam mais na modulação do som do que na substância do género – Costa não tem coragem; eu sou fazedor, diz o outro.

O PS e o PSD afirmam defender o SNS, mas o que é para cada um deles o SNS? Um serviço burocratizado, sem inovação, sem investimento, sem qualidade, destinado aos mais pobres, obrigando os restantes a bater à porta dos seguros de saúde num país em que em cada três, um é pobre? Um serviço para servir os privados? Precisamos de ser esclarecidos e não fintados.

Na habitação vale tudo menos a verdade, como se o ruído acerca do que se anuncia há muitos anos fizesse nascer casas. O PS votou contra a Lei Cristas, mas no governo não lhe mexeu.

No plano da Educação, é simplesmente um jogo de esconde-esconde. O governo do PSD, por ordem da troika, congelou totalitariamente parte dos descontos dos professores de modo a impedi-los de atingir o topo da carreira, opondo-se o PS na altura a tal decisão. Agora, o PS no governo não desfaz a injustiça e o PSD clama conta a atitude do PS que não reverte a sua decisão. Brilhante.

Na Justiça, o Estado ganha dinheiro com as custas judiciais elevadíssimas para impedir os cidadãos de ter acesso à Justiça. Revela incapacidade para ter os tribunais a funcionar em tempo decente, uma marca dos últimos 40 anos. Pode-se viver sem justiça, mas vive-se muito mal. Até agora, estes partidos têm sido incapazes. E os outros, que mobilização fazem contra este charco?

Qual é a dificuldade, a não ser por puro fechamento, dos partidos se entenderem para melhorar abonos de família e certas prestações sociais para que os portugueses criem condições para aumentar a natalidade?

Como aceitar que não haja na AR um grupo de trabalho com deputados de todos os partidos para estudar e propor medidas para o país não cair ao mar e para fixar gente no interior, ou seja, num raio de 150 quilómetros em vez de 50? Se aumentar a população no “interior”, em breve diminuirá significativamente o número de incêndios e o impacte no clima far-se-á sentir positivamente. Não dá votos, e mesmo os que se dizem não eleitoralistas, na hora da verdade investem onde há gente.

Há guerra na Europa. Que se discute em termos da procura de uma solução que salvaguarde a paz? A gritaria no lado ocidental não se distingue da do outro lado, até na censura. O insuportável ruído favorável à guerra continua.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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