Sobre o fogo

Rimos de quem cai, de quem tropeça, de quem falha, mas também de quem vence, amesquinhando o triunfo, e ainda rimos do opressor, fragilizando a sua força.

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Podemos rir de felicidade, mas também podemos usar o riso como arma. Rimos de quem cai, de quem tropeça, de quem falha, mas também de quem vence, amesquinhando o triunfo, e ainda rimos do opressor, fragilizando a sua força. Por vezes, é a única atitude possível quando nos percebemos impotentes face às circunstâncias, por isso há quem ria da morte e, durante o tempo dessa gargalhada, a morte perde o seu poder. Não é derrotada, claro, mas interrompe-se a dor que inflige.

Rir face à tragédia requer uma espécie muito particular de coragem, que oblitera o sofrimento e, no caso da serra, suspende as lágrimas que os incêndios provocam. Sim, algumas pessoas brincam com o fogo. Algumas pessoas, depois de ele passar, arrasador com o seu exército de chamas, ridicularizam a sua devastação, dizendo que os pimentos já estão assados, que os javalis também, que é só pôr a mesa e abrir uma garrafa de vinho.

Antigamente, os pastores pegavam fogo ao pasto e chamavam os bombeiros. Adubavam os terrenos transformando-os em cinza, fazendo despontar com renovado vigor o verde da vida, o verde que usa como ventre as fezes dos fogos, as cinzas, e com isso medra. A isto basta juntar água para que a natureza renasça com o esplendor necessário e os nutrientes requeridos para o alimento das ovelhas. Os bombeiros ao apagar as chamas regavam as terras. A cinza era adubo, os bombeiros eram o sistema de rega. Mas esses fogos controlados são muito diferentes dos outros, dos que destroem tudo, queimando casas, queimando vidas.

Os habitantes da serra, muitos deles, garantem não ter medo desse fogo.

— Não temos medo — disse o Mário do lagar ao Severo.

— Nem eu nem a minha família. Nunca morremos queimados.

Disse esta frase assim mesmo, no passado, como se, por nunca ter acontecido, nunca pudesse vir a acontecer. Nunca morremos queimados, repetiu. Apesar de o negar, tinha medo. Ele e todos os outros.

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Fábrica de Criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta-feira. Ao sábado oiça os textos da semana em podcast, lido pelo autor. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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