Os vinhos são filhos das castas? O melhor é pensar que sim!

A qualidade de um vinho resulta de uma complexidade de variantes que incluem local, solo, clima e onde entra também o homem, os seus hábitos e conhecimento. E as castas fazem parte desta complexidade.

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Há muitos factores que contribuem para a complexidade de um vinho Nelson Garrido
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Entender os vinhos, conhecer todos os seus meandros e características, aquilo que é decisivo para a sua qualidade, é mais ou menos uma miragem. Desenganem-se aqueles que possam pensar que os especialistas e enólogos tudo sabem. Bem pelo contrário. Dado o seu grau de conhecimento, podem até ser mesmo aqueles que mais dúvidas tenham perante um vinho, ao passo que para o consumidor comum tudo se pode resumir ao básico “gosto ou não gosto”. E como o vinho é fundamentalmente prazer e satisfação, por vezes o melhor é mesmo não avançar com muitos “porquês”, que a vida pode tornar-se complicada.

Costumam dizer os autores que querer entender os vinhos é quase como avançar para o caos, pretender orientar-se nos caminhos da selva. Cada vinho é único, um produto diverso, caprichoso, confuso e irregular. E, ainda por cima, a sua apreciação varia consoante o provador/consumidor. E essa é a sua magia, por isso é que o vinho é tão emocionante e arrebatador.

Daí que quando se pergunta se o vinho é filho das castas, o melhor é, por uma questão de método, começarmos por pensar que sim. Mas não é mesmo assim? Sim, é, mas isso não é o mais importante. Pensemos desde logo em todos os grandes vinhos do mundo, como o nosso Barca Velha, por exemplo, e alguém sabe — ou quer saber quais são as suas castas? E se soubesse e as usasse para fazer outro vinho, iria ser igual?

A referência às castas é, digamos assim, uma moda recente. Um meio fácil e expedito de responder à curiosidade dos novos consumidores, de os cativar e atrair para o caos maravilhoso que é o mundo dos vinhos. Em termos simplistas, pode dizer-se que terá surgido com o advento do chamado Novo Mundo, os novos países produtores que se inspiraram no sucesso dos vinhos franceses. Adoptando uma meia dúzia das suas castas mais famosas, as mesmas técnicas e o mesmo tipo de barricas.

Terá sido fundamentalmente para reforçar essa ligação que começaram a destacar nos rótulos os nomes das castas. E, num fenómeno de uniformização, os consumidores passaram a escolher e a pedir os vinhos das castas que mais lhes agradavam. Um modelo que depressa se alastrou de uma forma geral a todos os novos consumidores, incluindo os do Velho Mundo.

Para se ter a ideia de como a coisa é recente, veja-se o que ainda há cerca de duas décadas escrevia Émile Peynaud, um dos grandes mestres da Escola de Enologia de Bordéus, no livro Descobrir o Gosto do Vinho (1999): “Mais recentemente, o marketing tem-nos proposto ‘vinhos de casta única’, obtidos a partir de zonas por vezes muito vastas, e também os ‘vinhos de várias castas’, e em seguida os vinhos de marca”.

Isto, por oposição à noção dos vinhos cuja referência qualitativa é a região, a marca, a propriedade ou parcela e não as castas que entram na sua composição. Esta é a tradição do Velho Mundo, da cultura secular de países como França, Itália, Espanha e Portugal.

No nosso caso — e embora a referência às castas esteja cada vez mais enraizada a coisa pode tornar-se até particularmente complicada, já que somos o país com o maior número de castas autóctones. Cerca de 250, pelo menos, dizem os conhecedores, sendo certo que a produção estará hoje concentrada em duas ou três dezenas.

E se pensarmos que a tradição é a mistura de várias castas e que cada uma delas se comporta de forma diferente consoante o ano, o lugar, a exposição, altitude ou forma de cultivo, bem percebemos a complexidade da coisa. Isto já para não falar do tipo e forma de recipientes ou método para vinificação, barricas ou tempo de estágio.

Serão mesmo os vinhos filhos das castas? O que nos dizem as castas sobre o tipo e a qualidade de um vinho? Muito pouco, de facto, o que é ainda agravado pelo teor inócuo, quando não mesmo enganoso, das inscrições que aparecem nos rótulos.

Mas é também certo que o conhecimento das castas nos pode ajudar a perceber o tipo de vinho. Como princípio, já que são hoje conhecidas as características de cada uma delas, o tipo de aromas e sabores que genericamente aportam. E para cada região há um conjunto de castas que são recomendadas, que podem proporcionar uma certa tipicidade.

E a verdade é que, para o consumidor moderno, o conhecimento das castas é é caminho mais directo para começar a entender um vinho. Mas isso não basta para o compreender. Até porque, com as mesmas castas e na mesma região, até na mesma propriedade se fazem vinhos completamente diferentes.

As castas ajudam? Sim, podem ajudar. Mas os vinhos não são filhos das castas. Apoiam-se nelas, mas são antes filhos de uma complexidade de variantes que vão desde o local, solo, clima, o homem e até os seus hábitos e conhecimento. E as castas fazem também parte desta complexidade. Querer entendê-la será mesmo como enfrentar o caos, escolher o caminho da floresta. O melhor é mesmo prová-los e saboreá-los, escolher o caminho da emoção e do prazer. Por isso é que o vinho é maravilhoso, não deixa ninguém indiferente.

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