Grandes castas portuguesas

Com tantas castas portuguesas excepcionais, porque perdemos tempo a dançar com castas estrangeiras? Não faria antes sentido perder tempo a explorar e promover aquilo que nos diferencia num mundo tão globalizado que luta pela afirmação da diferença? Rui Falcão procura respostas a estas inquietações

Originalidade e bizarria <br/>No vinho, como em tantos outros campos da identidade e coesão sociais, Portugal continua a ser um país discordante das normas europeias, um país simultaneamente original e bizarro, terra fértil para um somatório de singularidades e excentricidades que convertem o vinho português em caso único no mundo. Os vinhos portugueses continuam assentes em práticas descoincidentes, alimentados por castas únicas, estampados segundo princípios enológicos únicos, dando corpo a uma cultura vínica vincadamente diferente e original, divergente dos padrões triviais adoptados pelos restantes países europeus. A lista das especificidades nacionais é vasta, da vinha à adega, da filosofia às práticas, num somatório de características exóticas que propiciam uma cultura peculiar, da qual, por estarmos tão familiarizados, raramente temos plena consciência. <br/>Fazemos tantas coisas de forma tão diferente dos restantes países produtores que raramente nos apercebemos... que somos únicos no mundo! Convivemos tão de perto com a nossa realidade vinícola que raramente conseguimos o distanciamento suficiente para perceber como somos originais e excêntricos. Originais na utilização das castas portuguesas, inexistentes em qualquer outra parte do mundo, uma riqueza retumbante que se traduz no número impressionante de cerca de 320 castas autóctones, muitas das quais com nomes tão exóticos como Esgana Cão, Amor-não-me-deixes, Carrega Burros, Dedo de Dama, Dona Joaquina, Pé Comprido ou Zé do Telheiro. Uma fortuna a que temos de prestar atenção, naquela que é uma vantagem competitiva evidente dos vinhos nacionais, capazes de oferecer ritmos e perfis ímpares no mundo. <br/>Somos igualmente originais na arrumação das vinhas, nessa jóia excepcional da viticultura universal que são as vinhas misturadas, peculiaridade congénita a tantas vinhas portuguesas, realidade inexistente e extravagante em todos os restantes cantos do mundo. Vinhas misturadas onde, na mesma parcela, no mesmo talhão, podem conviver alegremente dezenas de castas, por vezes brancas e tintas, numa harmonia primorosa da natureza que dilui os riscos do produtor e permite um equilíbrio quase perfeito entre maturação e acidez. Só em Viena, nas encostas das colinas que envolvem a cidade, ainda subsiste tal prática, nas vinhas Gemischter Satz, realidade vendida a preço de ouro como originalidade extrema e relíquia de um passado distante. E nós, com todo um país dedicado a tal prática, não a sabemos vender, divulgar e promover... <br/>As originalidades estendem-se à adega, visíveis na tradição dos lagares de pedra e na pisa a pé, duas realidades exóticas e quase caricatas que surpreendem quem nos visita pela primeira vez. Mais uma vez, por estarmos tão próximos da realidade, esquecemo-nos que estas duas práticas constituem rotinas anacrónicas, singularidades nacionais que resistiram à passagem do tempo, à boleia do Vinho do Porto. Mais a Sul, em terras alentejanas, subsistiu outra prática surreal, a fermentação de vinhos em velhas talhas de barro, herança romana milenar que o conservadorismo portucalense se encarregou de conservar. De novo, três práticas originais que ganharíamos em ver promovidas e destacadas, enaltecidas por se afirmarem únicas no mundo. <br/> <br/>O diktat da geografia <br/>E, finalmente, há que discorrer sobre a arte do lote, sobre essa propensão única portuguesa para juntar duas ou mais castas num só lote que combine o melhor de cada variedade, diluindo as insuficiências que cada casta poderia apresentar isolada. Historicamente, nunca os vinhos portugueses foram engarrafados em versão extreme, com uma só casta, com uma só variedade, sem o contributo, mesmo que residual, de outras castas ditas "melhorantes", do sal e pimenta que ajudem a temperar os excessos e vícios de cada variedade. Entre as poucas excepções conhecidas sobressai o Alvarinho, tradicionalmente engarrafado solitário, e os Frasqueira da Madeira, com relevo para o Sercial, Verdelho, Terrantez, Boal e Malvasia. Mesmo a Baga e o Moscatel, idealizados como vinhos de uma só casta, costumam apurar virtudes com o amparo e condimento de outras variedades, mesmo que em proporções diminutas. Lotes que, no caso das vinhas misturadas, podem chegar ao cúmulo de totalizar mais de vinte variedades diferentes, num registo único no mundo... que mais uma vez deveríamos publicitar! <br/>Porque a realidade portuguesa se apresenta tão singular, privilegiando o local e a identidade geográfica em detrimento da casta, prestando pouca atenção à variedade como elemento identificador, desbaratámos séculos de saber e conhecimento, de investigação sobre as castas lusitanas. Para a ausência de saber e sistematização ajudou o isolamento e o facto de a mesma casta mudar de nome consoante a região, perdendo-se em meia dúzia de sinonímias que dificultaram a correcta identificação da variedade. Veja-se, por exemplo, a Trincadeira do Alentejo que no Douro ganha o epíteto de Tinta Amarela, a Aragonês alentejana que no Douro e Dão contrai o nome Tinta Roriz, a Fernão Pires que na Bairrada muda de sexo transfigurando-se em Maria Gomes, ou ainda a Bical da Bairrada que troca de apelido consoante as regiões do país, ora ganhando o nome Borrado das Moscas no Dão, ora Arinto de Alcobaça no Ribatejo, ora Pintado dos Pardais na Estremadura! <br/>E assim fomos vivendo felizes até ao despertar de consciência repentino durante a década de noventa, para a realidade das castas nacionais. Inopinadamente, e fruto do trabalho extraordinário de alguns abnegados, as castas nacionais ganharam corpo e espaço próprio, notoriedade e reconhecimento, começando a ser identificadas pelo nome. Num impulso irrefreável e quase explosivo sucederam-se experiências infinitas com vinhos extremes, algumas mirabolantes, com dezenas de castas nacionais, das mais interessantes às mais inócuas, num esforço imenso por descobrir o potencial de cada casta. Necessariamente, e como em todos os movimentos radicais e revolucionários, cometeram-se excessos e redundâncias, tendo, felizmente, os méritos superado largamente os inconvenientes. Do enorme lote de ensaios, algumas castas emergiram como líderes incontestadas, variedades primorosas na qualidade e carácter, algumas das quais com capacidade para cantarem sozinhas, sem necessidade de um coro de suporte. <br/> <br/>Seis castas de eleição <br/>De entre as muitas castas portuguesas de qualidade superior, aquelas que mostram personalidade mais vincada, consistência qualitativa e expressão própria, decidi destacar três brancas e três tintas, seis castas que, sozinhas ou acompanhadas, engrandecem o nome de Portugal, afirmando-se como insígnias naturais dos vinhos nacionais. São elas o Alvarinho, Encruzado e Bical nas variedades brancas, e a Touriga Nacional, Baga e Alicante Bouschet nas variedades tintas. Como todas as escolhas, também esta será controversa e incerta... mas sintetiza a minha leitura e interpretação das castas nacionais e dos vinhos que melhor as interpretam. <br/>O Alvarinho é, seguramente, a estrela maior das castas brancas nacionais, uma das raras capazes de dar corpo a vinhos de qualidade incontestável. É uma casta profundamente aromática e perfumada, simultaneamente distinta e delicada, capaz de propiciar aromas tão díspares como pêssego, limão, maracujá, lichia, maçã, casca de laranja, jasmim, flor de laranjeira e erva-cidreira. Possui uma capacidade de envelhecimento notável, oferecendo vinhos que podem viver durante mais de duas décadas em garrafa. Apesar da enorme plasticidade que lhe permite conviver bem com a fermentação em madeira, são raros os exemplos onde os ganhos são superiores à fatal perda da pureza da fruta. E é precisamente da casta Alvarinho que nascem os melhores brancos nacionais, consubstanciados nos vinhos Soalheiro divididos entre a versão clássica, o Primeiras Vinhas e o Reserva, o último dos quais fermentado e estagiado em madeira. Especialmente interessantes estão os Soalheiro Reserva 2007 e o Soalheiro Primeiras Vinhas 2008. <br/>O Encruzado outra das raras castas brancas nacionais de qualidade irrepreensível, não tem, estranhamente, viajado para fora do seu Dão natural, desgarrada do círculo das castas da moda. A sua maior virtude é a capacidade única para manter um equilíbrio perfeito entre açúcar e acidez, equação fundamental da enologia, os dois parâmetros mais difíceis de compatibilizar na uva. Porém, se na vinha falamos em facilidades, na adega falamos em adversidades. É uma casta sensível, de oxidação fácil, exigindo cuidados extremados e dedicação total. Quando bem trabalhada, oferece aromas delicados citrinos, insinuações resinosas e, por vezes, dependendo do terroir, notas minerais intensas. Mas é a estrutura, o equilíbrio, a untuosidade e a incrível capacidade de guarda que a tornam tão apetecível. O exemplo perfeito das virtudes da casta é o Quinta dos Roques Encruzado, especialmente interessante na edição 2008. <br/>A casta Bical, estranhamente tão desconsiderada, encontra-se presente na Bairrada e Dão. É, por mérito próprio, uma das castas brancas mais promissoras e de maior potencial qualitativo em Portugal. Dá forma a vinhos macios e aromáticos, frescos e bem estruturados. As notas de pêssego e alperce são emblemáticas, acompanhadas por vezes, nos anos mais maduros, por discretas e sensuais notas de fruta tropical. Com a idade, os melhores exemplares ganham leves notas apetroladas, não muito distantes das sensações transmitidas pelos bons Riesling alemães. Não escondo que um dos maiores mistérios da viticultura nacional é o aparente alheamento nacional perante esta casta tão interessante! O vinho que melhor ilustra as virtudes da casta é o Luis Pato Vinha Formal, um dos raros vinhos extremes de Bical, enorme na dimensão e tensão, magistral na colheita 2008. <br/>Se existe alguma casta que possa representar internacionalmente os vinhos nacionais, que se afirme como imagem externa de Portugal, esse papel cabe por inteiro à Touriga Nacional. É a casta mais elogiada e mais desejada do momento. A abastança em aromas primários é a imagem de marca da Touriga, ora florais, ora frutados, ora citrinos, sempre intensos e explosivos. Infelizmente, os seus atributos são também os principais defeitos, pecando quando a exuberância aromática se apresenta excessiva. Casta de esperança e simultaneamente confirmação da viticultura nacional, da Touriga Nacional espera-se que abra as portas do mundo aos vinhos portugueses. O espelho mais feliz da casta divide-se por entre dois actores principais, entre a exuberância contida do Quinta do Crasto Touriga Nacional, sobretudo da colheita 2005, e a austeridade e serenidade do Quinta dos Roques Touriga Nacional, patente nas colheitas 2005 e 2007. <br/>A Baga assume especial protagonismo na Bairrada, numa quase ditadura dos encepamentos. É uma casta sensível e especialmente susceptível à podridão. Plantada na Bairrada, num clima marcadamente atlântico, sofre ferozmente com as provações das primeiras chuvas de Setembro. Vindimada demasiado cedo dá forma a vinhos excessivamente verdes e herbáceos, rudes e aguados, capazes de destruir a reputação de toda uma região. Com boa fruta, com boas maturações, em anos secos e quentes, a Baga oferece vinhos de cor profunda, com fruta bem definida de bagas silvestres e ameixa preta, taninos sólidos, acidez mordaz e, curiosamente, notas de café, erva seca, tabaco e fumo. Os vinhos da Quinta das Bágeiras Garrafeira são um dos melhores tributos à grandiosidade da Baga, grandiosidade igualmente visível nos Quinta de Foz de Arouce Vinhas Velhas de 2005. <br/>Finalmente a Alicante Bouschet, aquela que, apesar de formalmente não ser uma casta portuguesa, acabou tão enraizada no património colectivo que hoje a assumimos como tal. É uma das raras castas tintureiras, capaz de proporcionar vinhos de cor intensa, como o traduz uma das sinonímias não oficiais, "Tinta de Escrever". Em Portugal, sempre se sentiu em casa no Alentejo. É uma casta que acrescenta estrutura, firmeza, taninos... e cor, muita, muita cor! É uma casta rústica e estruturante, que em condições ideais, pode dar origem a vinhos extraordinários. Raramente apresenta atributos suficientes para poder brilhar a solo, para encantar com as suas aptidões, mas faz maravilhas em vinhos como os Mouchão 2005 e os Dona Maria Reserva 2005, oferecendo vigor e opulência, densidade e corpo... e uma vida em garrafa quase ilimitada! <br/>

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