Extrema-direita quer “direito à vida” na Constituição do Chile

Sondagem diz que 60% dos chilenos consideram rejeitar a proposta de texto da constituinte dominada pelo Partido Republicano. O anterior projecto de Constituição foi rejeitado em referendo em 2022.

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Manifestação pelo direito das mulheres ao aborto em Santiago, Chile, em 2015 Ivan Alvarado/REUTERS
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Várias organizações de defesa do direito ao aborto no Chile avisam para o risco de o limitado direito ao aborto, permitido em algumas circunstâncias no país, venha a terminar se vingar uma nova Constituição onde a extrema-direita quer incluir uma cláusula de direito à vida.

Entre as pessoas a fazer soar o alerta está a antiga Presidente Michelle Bachelet que, numa entrevista ao programa CNN 50, Testimonios de la Historia (uma série que assinala os 50 anos sobre o golpe militar de Augusto Pinochet), chamou a atenção para “várias alterações para diminuir os direitos das mulheres”, por exemplo, se for aprovada a protecção da vida antes do nascimento, “o passo seguinte vai ser declarar inconstitucional a interrupção da gravidez”.

Mais de 200 organizações chilenas, a que se juntaram também organizações internacionais, fizeram, no início do mês, uma carta aberta criticando a proposta do Partido Republicano, que inclui um “direito à vida” sem mais detalhes, diz o diário britânico The Guardian.

“Seria um gigantesco passo atrás”, afirmou Stephanie Otth Varnava, da organização Miles Chile, citada pelo Guardian. “Significaria juntarmo-nos a um grupo muito pequeno de países que penalizam o aborto em qualquer circunstância.”

Foi durante a presidência de Michelle Bachelet, em 2017, que o Chile descriminalizou o aborto em três circunstâncias específicas: risco para a vida da mãe, na impossibilidade de sobrevivência do feto ou se a gravidez for resultado de violação.

A elaboração de uma Constituição – que seria a primeira depois do regime de Augusto Pinochet – foi um processo em que o entusiasmo pela mudança acabou em desânimo, e na rejeição, num referendo em 2022, de um texto que foi considerado demasiado ideológico, à esquerda, e demasiado colado ao Presidente, Gabriel Boric.

O partido de Boric prometeu estabelecer pontes para fazer aprovar finalmente uma nova Constituição, mas numa entrevista ao diário espanhol El País, Yerko Ljubetic, um dos representantes do partido de Boric no Conselho Constitucional, avisava que “seria muito mau que o Governo apoiasse uma Constituição com menos direitos, liberdades e progresso do que a que está em vigor”.

Uma sondagem da Universidad Diego Portales indica, entretanto, que 60% da população se inclina a rejeitar o novo texto constitucional – embora muitos considerem importante que o país tenha uma nova Constituição. Na sondagem, citada pela agência Efe, 74% dos inquiridos defendia ainda manter a lei actual sobre o aborto.

Um inquérito de opinião anterior do Centro de Estudios Públicos (CEP), instituto com sede em Santiago, dava conta de uma mudança significativa de posição quanto ao aborto nas últimas décadas no país: o apoio à possibilidade de aborto em certos casos aumentou de 35% em 1999 para 49% em 2023. E, em sentido inverso, a percentagem de pessoas que apoiam a proibição da interrupção voluntária da gravidez em todos os casos diminuiu de 55% para 19% no mesmo período, diz o Guardian.

O Partido Republicano foi fundado em 2019 por José Antonio Kast, saudosista de Pinochet e pai de nove filhos. Kast chegou à segunda volta das presidenciais de 2021, tendo sido derrotado por Boric.

Apesar de ter uma grande expressão no Conselho Constitucional e poder de veto, o seu partido tem apenas 12 deputados entre os 155 da câmara baixa do Parlamento e dois lugares em 50, no Senado. No entanto, o presidente do partido, Arturo Squella, mencionou o objectivo de se tornar a força maioritária no Congresso – e a partir daí, terminar com o direito ao aborto nas três circunstâncias em que é actualmente permitido.

Os países da América Latina e Caraíbas com proibições totais do aborto são o Haiti, República Dominicana, Nicarágua, Honduras, El Salvador e Suriname, enumera o Guardian.

A tendência global em relação ao aborto tem sido para maior liberalização (até na região, começando com a legalização na Argentina em 2020). E apenas quatro países dificultaram o direito ao aborto desde 1994: os Estados Unidos (onde foi dado o passo mais recente com vários estados a proibir o aborto na sequência da reversão da decisão Roe vs. Wade, que estabelecera, em 1973, o direito ao aborto), a Polónia, El Salvador e a Nicarágua.

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