Meter a cabeça na terra

Quando se sente ameaçada, a maior ave do mundo atira-se para o solo e faz-se de morta ou dá uma patada tão valente que é capaz de matar um tigre e um patrão.

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Megafone P3: Meter a cabeça na terra DR
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Após o tranquilizante, a cabeça da mulher emergiu devagar da areia. Permanecendo ajoelhada, mas de tronco erguido, abanou a cabeça e sacudiu com as duas mãos os inumeráveis grãos de areia presos ao cabelo cortado rente à nuca. Ergueu-se nas duas pernas e livrou-se também da areia alojada nos ombros do casaco como flocos de caspa. Sacudiu o tronco e os joelhos e os sapatos de salto alto. Estava pronta.

Entrou no escritório, cumpriu o serviço dentro das suas possibilidades. Quis mostrar dedicação e permaneceu até todos, excepto o patrão, terem saído. Ao preparar-se para sair, o chefe aproximou-se e comunicou-lhe o que já previa: – Vou ter de dispensá-la, lamento. Não questionou nem se despediu.

Dirigiu-se, então, ao maior vaso de plantas da empresa e, arrancando pela raiz a que lá se encontrava, escavou a terra com os dedos e quis voltar a enterrar a cabeça. Todavia, terra e areia são matérias diferentes. Por isso, além do despedimento, deu-se outra dificuldade. Por mais que empurrasse a testa para o fundo do vaso, a terra oferecia resistência.

Estava, portanto, ajoelhada com a cabeça dentro do vaso sem planta e com as duas mãos empurrando o rebordo, quando no bolso do casaco começou a tocar o telemóvel. Resolveu ignorar e insistir na tarefa a que se tinha proposto – meter a cabeça na terra. O patrão, julgando-se só na empresa, foi atraído pelo som do telemóvel e deparou-se com a estranheza daquela figura, não conseguindo ficar indiferente.

– O que se passa, Ema? A mulher ergueu o rosto do vaso. Mostrando a tez encardida, as pestanas e os lábios com pedaços de terra.
– Fui despedida, mas vou plantar-me na empresa – disse, revelando um humor acima da expectativa do chefe. Dado o inusitado da situação, o patrão decidiu nada mais perguntar; afastou-se.

A mulher continuou ainda com mais empenho a árdua tarefa de meter a cabeça no vaso de terra, até que, de tanto forçar o rebordo de barro cru com as mãos, este partiu-se, espalhando a terra pela alcatifa. Agora sim, com a terra espalhada pelo chão, a mulher pôde reuni-la num pequeno monte e enterrar finalmente o rosto todo, embora, verdade seja dita, tenha deixado de fora mais de metade da cabeça. Concluiu-se que o problema era o recipiente, não a matéria.

Ema assim permaneceu até começar a ter dificuldade na respiração. Quis insistir mas começou a faltar-lhe o ar. Como as orelhas estavam fora da terra, ouviu o chefe chamar a polícia. Sentiu a terra entrar-lhe pelas narinas, engasgou-se. Contrariada pelo seu instinto de sobrevivência, ergueu a cabeça, tossiu bastante e saltaram-lhe lágrimas do esforço.

Voltou a respirar com normalidade. Apercebeu-se que meter a cabeça num monte de terra não era forma de resolver o problema. Levantou-se da alcatifa, sacudiu a terra da cara e do corpo. Abriu a janela do escritório e atirou-se do 7.º andar. Caiu de cabeça na terra. Diz-se que a avestruz, em caso de perigo, mete a cabeça na areia.

Ninguém sabe porque se diz tal coisa; não é, de todo, verdade. Quando se sente ameaçada, a maior ave do mundo atira-se para o solo e faz-se de morta ou dá uma patada tão valente que é capaz de matar um tigre e um patrão. As emas não enterram a cabeça na terra, desconhecem o desespero.

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