A Igreja de Francisco não é para “todos, todos, todos”, por muito que o repitam

As palavras do Papa não correspondem à realidade da instituição que lidera. Comprar o discurso cor-de-rosa das jornadas esconde o papel opressivo da Igreja.

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Megafone P3: A Igreja de Francisco não é para todos, por muito que o repitam Nelson Garrido
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À porta de casa, tenho um cartaz oficial da Jornada Mundial da Juventude com a palavra “igualdade” sobreposta à cara de uma jovem sorridente, como se fosse um cartaz feminista. O Papa abriu a JMJ dizendo que “na Igreja há espaço para todos.” Nos últimos dias, os media portugueses repetem acriticamente as palavras deste Papa entre elogios por ser tão moderno.

Mas as palavras do Papa não correspondem à realidade da instituição que lidera. Comprar o discurso cor-de-rosa das jornadas esconde o papel opressivo da Igreja enquanto instituição para com as mulheres e as pessoas LGBT, e as muitas experiências de violência que ele acarreta.

Vale a pena lembrar algumas das posições da instituição que o Papa Francisco lidera e pelas quais é responsável. No documento oficial “E Deus criou-os homens e mulher” de 2019 (em que Francisco já era Papa), vemos a posição oficial da Igreja sobre questões de género e sexualidade. Spoiler pouco surpreendente: afinal, para a Igreja, uns são mais iguais do que outros.

Este documento defende a complementaridade dos sexos: homens e mulheres têm igual dignidade, mas naturezas diferentes e complementares. Os homens têm qualidades que os adequam a liderança, e, portanto, a ocupar graus altos em hierarquias de poder. As mulheres, em contraste, têm por natureza tendência ao cuidado e a maternidade.

Por outras palavras, a doutrina oficial da Igreja repete estereótipos que servem para manter as mulheres em casa, e, dentro da Igreja, fora de posições de liderança como o sacerdócio.

É também uma doutrina que justifica intervir para corrigir quem se desvie da “natureza” do seu sexo. Isto inclui, entre outros, mulheres que não queiram ter filhos, pessoas que se vistam ou comportem fora de normas sociais de género — e qualquer pessoa LGBTI+.

Duas pessoas do mesmo sexo não têm as ditas “naturezas complementares,”, por isso relações homossexuais vão contra esta doutrina. Os homens e as mulheres trans não têm o género que afirmam, já que isso iria contra as suas naturezas: em vez disso, estão confusas.

As pessoas não-binárias não podem nem existir, já que não existe espaço que sobre entre homens e mulheres. E as pessoas intersexo (até 1,7% da população, tanto como o número de pessoas naturalmente ruivas) necessitam de correcção para encaixarem numa das caixas que deus criou, em vez de serem consideradas uma parte natural da diversidade humana.

As palavras bonitas do Papa sobre igualdade e uma igreja para todos não apagam os princípios oficiais da instituição de que é o líder máximo, nem negam o apoio ideológico que a igreja presta à extrema-direita em questões de género e sexualidade, nem apagam as terapias de conversão e pressão social extrema, incluindo ameaças de ir para o inferno, sofrida por jovens católicos LGBT.

Tudo isto tem sido reflectido no dia-a-dia das JMJ. O Centro Arco-Íris, que programou actividades para jovens católicos LGBT, viu negado o seu pedido de inclusão no programa oficial das Jornadas. A sua missa foi invadida por católicos tradicionalistas, exigindo até intervenção da PSP pela segurança dos jovens LGBT.

Participantes LGBT nas Jornadas viram-se ameaçados e ridicularizados. Nos media espanhóis, circulam vídeos de peregrinos em Lisboa cantando motes do partido de extrema-direita Vox e hinos franquistas. E nas redes sociais portuguesas circulam vídeos de peregrinos tentando expulsar um jovem com a bandeira trans, e outro de um peregrino aproximando um isqueiro dessa bandeira.

A igreja “para todos” que o Papa promete implica a aceitação plena de pessoas LGBT como são, não na condição de passar por terapias de conversão ou viver no armário. E igualdade de género implica mais do que afirmações de igual dignidade. Requer igual direito a participação social e política em todas as instituições (incluindo dentro da igreja), fora das limitações de estereótipos antiquados. Tudo isto requer que os responsáveis da instituição exerçam o seu poder para transformar a Igreja.

Enquanto isto não acontecer, importa recordar que a igreja católica rejeita, exclui e diminui as mulheres e as pessoas LGBT. Não podemos transmitir acriticamente as palavras do Papa sem as contrastar com os factos da instituição que lidera e com as vivências de jovens católicos que não encaixam na doutrina da igreja. Se queremos realmente defender a igualdade, devemos manter-nos críticos da Igreja enquanto instituição, exigir responsabilidade e coerência ao seu líder máximo e apoiar quem realmente avança em direcção à igualdade, incluindo activistas feministas e LGBT que lutam por ser realmente incluídos dentro da Igreja.

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