Também me senti na obrigação de vos dar uma história feliz

Mas o que era o sucesso? Ainda não tinha percebido. Se o sucesso era andar stressada e triste com um saldo bancário bem razoável, tinha conseguido ser bem-sucedida.

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Megafone P3´: Também me senti na obrigação de vos dar uma história feliz Dung Le Tien/Pexels
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Saber quando parar não era líquido e talvez estivesse associado à coragem. Algo lhe dizia que sim. Parar, em vez de prosseguir, era corajoso. Embora a mãe lhe dissesse desde que era pequena: não podes desistir. Aprendeu que desistir era para falhados, que continuar, insistir, é que era a receita para o sucesso. Mas o que era o sucesso? Ainda não tinha percebido. Se o sucesso era andar stressada e triste com um saldo bancário bem razoável, tinha conseguido ser bem-sucedida.

Por outro lado, começava a pensar que ter sucesso era algo desagradável, ainda por cima invejado por alguns, o que a deixava cada vez mais num estado de isolamento. Não queria ter nada para invejar, foi por isso que se despediu de um emprego bem pago que abominava, vendeu o apartamento na cidade e partiu, sem saber muito bem o que estava a fazer, para uma pequena cidade no interior do país.

Com as poupanças conseguiria aguentar alguns meses sem fazer nada. Alugou uma casa na aldeia; a única coisa que se permitiu pensar: logo se vê. Por agora não queria ver. Queria sentir, que era coisa que há muito tinha deixado de fazer. Para começar, os cheiros, como cheirava bem na aldeia, a flores e vegetação que desconhecia. À hora das refeições, os cheiros a comida das casas vizinhas ondulavam em direcção ao seu nariz.

E não pensava, sentia fome e logo se punha a cozinhar coisas imaginadas no momento. Por exemplo, misturava frutos secos no arroz depois de cozido, bebia leite às refeições, fazia basicamente o que lhe apetecia, como uma criança crescida acedia aos apetites do momento. Como é que antes nunca lhe ocorrera viver assim tão livremente? Não entendia. Agora sim, o "logo se vê" tinha chegado: estava a ver.

Porém, nem tudo eram flores novas, também conheceu algumas ervas daninhas. À noite ficava sempre uma temperatura fleumática, típica da aragem da montanha. Nunca tivera tanto frio na vida. A casa não estava preparada, nem sequer havia um pequeno calorífero. Enrolava-se em duas mantas e acendia algumas velas para dar um ar quente à casa, mas por vezes chegava a bater o dente.

E nem assim deixava de se sentir satisfeita porque, ainda que fosse desagradável, estava feliz por ter novamente corpo; um corpo que reagia. Parar, em vez de fazer o expectável doutoramento e arranjar um bom emprego, ainda mais bem remunerado, tinha sido o acto mais corajoso que fizera. Foi só porque parou o percurso que lhe tinham traçado que descobriu agora uma outra vida: caminhar pelos arrabaldes da aldeia, conhecer os anciãos e anciãs, conversar, falar sinceramente sem outra intenção que não conviver e comunicar.

Conseguia finalmente dormir uma noite inteira de seguida. Assim se passaram várias semanas, foram até alguns meses, praticamente um ano inteiro, e de repente a pessoa que fora na cidade parecia ter-se apoderado de si novamente. Voltaram as insónias, as preocupações com o dinheiro que estava a extinguir-se na conta bancária. Tinha de arranjar soluções. Voltar para a cidade não seria possível, estava certa de que morreria se tivesse de embarcar novamente no bulício das luzes permanentes.

Então, como em vários contos apelidados de curtos, em que o desenlace não se pode estender por motivos económicos de texto, deu-se um milagre. Uma tia que vivia em França há mais de trinta anos, mais propriamente em Marselha, e cuja única prova que tinha da sua existência era uma fotografia do dia do seu baptismo, morrera, deixando-lhe uma herança. Veio a saber que a tia chegara a casar e a procriar, e que embora nunca tivesse entrado em contacto consigo durante toda a vida, à excepção do dia do baptismo em que fora sua madrinha, sentiu-se na obrigação de lhe deixar todo o dinheiro que tinha. E era muito. Dar-lhe-ia para a vida inteira.

Também eu me senti na obrigação de vos dar uma história feliz, porque a ficção contemporânea tem-se tornado um queixume autoficcional para o qual eu tenho contribuído. Mas com o calor, sejamos francos, ninguém aguenta.

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