Queer Utopia põe-nos nas memórias de Gabriel — e vai ao Festival de Veneza

No filme produzido em realidade virtual e com recurso a inteligência artificial entramos nas memórias da geração queer “semiapagada” pela sida, guiados por um dramaturgo de 70 anos.

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O realizador Lui Avallos Daniel Rocha
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MUNDIVAGANTE
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Gabriel libertou-se, por fim, naquela noite, numa casa de banho de um bar. A beijar outro homem, o dramaturgo queer agora aposentado de 70 anos leva-nos pelas primeiras memórias de cruising nos anos de 1970 e 1980.

Apelidada de ilegal, a paixão efervescente entre homens gays e a epidemia de sida são pilares de Queer Utopia, filme realizado por Lui Avallos com estreia marcada para o Festival Internacional de Cinema de Veneza e que assume a missão de “derrubar inúmeros estigmas”. A produção do estúdio Mundivagante, com sede na Penha de França, insere-nos nas memórias de Gabriel e esteve incluída na categoria de cinema produzido em realidade virtual, durante a Biennale College, que decorreu em Veneza.

“O projecto começou com uma investigação sobre o fenómeno cruising. Depois, utilizamos como referência as fotografias de Alvin Baltrop – que nos anos 1970 e 1980 fotografou os homens homossexuais no cais degradado do rio Hudson, nos EUA – e o livro Cruising Utopia de José Esteban Muñoz, um dos primeiros teóricos sobre esta utopia queer”, explica Lui Avallos.

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Em vários momentos de Queer Utopia, o espectador regressa ao cubo de betão, que representa a segregação social Mundivagante

O realizador brasileiro começou a explorar as possibilidades cinematográficas da realidade virtual no mestrado de Arte e Multimédia na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, durante a pandemia de covid-19. Em Janeiro de 2022, já com a Mundivagante e a ideia de fazer um filme de autor “interactivo e imersivo”, rumou à residência pensada para jovens criadores da Bienal de Veneza.

Para integrar no filme os lugares “de vanguarda do cruising” documentados por Alvin Baltrop, alguns em “zonas abandonadas e perigosas”, a equipa de Lui Avallos recorreu à inteligência artificial (IA). Assim, acrescenta o realizador, as “fissuras arquitectónicas” da cidade representam também as “fissuras sociais”, como a segregação da comunidade LGBTQIA+.

Com os óculos de realidade virtual é possível identificar as fábricas abandonadas, os prédios citadinos, mas também a arte do argentino Luís Frangella e do britânico Patrick Angus, por exemplo, nas paredes do bar onde a acção decorre.

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O realizador Lui Avallos Daniel Rocha

A geração queer “semiapagada” pela sida

Queer Utopia tem como protagonista Gabriel, um dramaturgo cuja memória se desvanece e o começa a trair, espontaneamente, até nos raciocínios do quotidiano. A personagem é a suma das entrevistas a homens com mais de 60 anos realizadas durante a residência em Veneza para compreender a “geração homossexual que sobreviveu à sida e que iniciou a defesa dos direitos LGBTQIA+”.

“Têm uma memória muito preciosa, é uma geração semiapagada, porque muitos deles morreram”, sublinhou Lui Avallos. Nessa ideia de existência que se esvai, os intervenientes do filme surgem como uma junção de partículas iluminadas, geradas por IA e com base em imagens de arquivo. Num olhar rápido sobre um dos monitores no estúdio, foi possível perceber que o músico Freddie Mercury, um dos primeiros casos mediáticos de sida entre a comunidade homossexual, serviu de inspiração para criar algumas das personagens.

“As memórias destas pessoas estavam mais ligadas a questões sociais do que sexuais, pelo olhar segregador que recebiam. Por exemplo, um dos entrevistados era professor universitário, mas naqueles espaços podia ser ele mesmo e encontrar os seus comuns”, comenta Rodrigo Moreira, produtor da Mundivagante.

Daniel Rocha
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Apresentado como “um cidadão do mundo”, o filme arranca na sala do apartamento de Gabriel, com vista para prédios comuns a qualquer “cidade grande”. Aliada à voz do protagonista, a interacção sensorial foi desenvolvida para que, em poucos minutos, o espectador se sinta ambientado e até capaz de relacionar o espaço envolvente com elementos da própria memória.

Entre regressos ao bar e a queda em cubos de betão que limitavam a expressão do “verdadeiro” Gabriel, o filme guarda ainda uma comparação entre discursos registados em 1959 e 2023, a fim de sublinhar o trabalho por fazer em matérias como os direitos da comunidade LGBTQIA+.

“A história é inspirada numa geração mais velha e, quando penso neste processo de exibição, temos o desejo de chegar também a outras gerações, para que a visualização em realidade virtual seja mais acessível, para lá do gaming”, explica o realizador.

A velhice e a IA no cinema

O trabalho que está na fase final de edição deparou-se com alguns desafios na construção da narrativa. Um deles, explica Rodrigo Moreira, foi evitar a associação de tristeza à velhice do protagonista, uma interrogação que apenas surgiu depois de o guião estar terminado. “Apesar da perda de memória, o Gabriel viveu uma vida muito interessante, feliz e enérgica. Tentamos reforçar essa perspectiva, para que a velhice não seja necessariamente algo triste, e que a memória seja preservada pelo espectador”, argumenta.

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Gabriel, o dramaturgo aposentado e protagonista de Queer Utopia Mundivagante

Outro tema que mereceu a reflexão na equipa da Mundivagante foi a migração do cinema para a realidade virtual e para a IA. Para Lui Avallos, a ilustração dos testemunhos permitem avançar na exploração da memória ao serviço da arte. Por isso, remata o realizador, trata-se, tal como no cinema e na fotografia, de novos processos para eternizar relatos de vida, até porque, insiste, a geração em destaque no filme foi silenciada.

Em Queer Utopia, o lado artístico da realidade virtual está patente, por exemplo, na performance voguing, que aliou a IA a movimentos humanos. Munida de um fato Mocap, Felicia Hunter, a Miss Drag Queen Lisboa 2022, que protagonizou a actuação, produziu movimentos que foram gravados num modelo 3D, ao som de techno house, vogue e música clássica.

“Colocamos a IA ao serviço do cinema, ao invés de a submeter somente à lógica capitalista. Mas continuamos a precisar das pessoas, porque a realidade virtual não tem capacidade imaginativa por si”, disse Lui Avallos.

O projecto, que contou com outros 11 elementos na equipa, entre assistentes de arte, artistas 3D, designers de som e cinco actores, foi o único a concluir a residência Biennale College de 2022, que anualmente selecciona 12 ideias provenientes de todo o mundo. “O Festival de Veneza vai abrir muitas portas”, sobretudo quando a Mundivagante contrasta com os habituais finalistas, de “países com maior orçamento”, conclui Lui Avallos, de sorriso rasgado, e ansioso pelo regresso a Itália para o festival de cinema que decorre entre 30 de Agosto e 9 de Setembro.

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