De Hipócrates (460-370 a.C.) ao chamado centrão do poder

Vivemos tempos que ofendem os melhores valores da democracia, como se a liberdade servisse para os gananciosos abocanharem o que lhes não pertence até ficarem prisioneiros de tanta ganância.

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Apesar de todas as modificações económicas, sociais e políticas ao longo dos últimos milénios, o bicho humano, no seu íntimo, não mudou tanto quanto a realidade que o rodeia, embora tenha sido ele o artífice dessas mudanças; bem mais nítidas no mundo exterior do que na psique.

O mundo é muito melhor do que o de Atenas, Esparta, Roma ou o de todos os reinos medievais ou até o que levou à segunda guerra mundial.

A verdade é que, no fundo da alma humana, continua a tristeza, a alegria, a maldade, a ambição, a violência, a arrogância, a bondade e tantos outros sentimentos positivos e negativos. Parece que avançamos no maravilhoso mundo novo, mas depois chega a hora e salta de dentro de nós o invisível que vem de muito longe, talvez depois de que deixámos de andar a quatro.

O cristianismo resolveu este problema de um modo fantástico, no Juízo Final fazem-se as contas, portanto vê lá se te portas bem. Mesmo com o tal Juízo Final, nem a própria Igreja tem escapado ao rosário de maldades ignominiosas e que são públicas.

Os comunistas defendiam que iam forjar sob a ditadura do proletariado o chamado homem novo e foi o desastre que se viu, até porque o homem é velhinho de mais para ser novo, o que não significa que o ideal não sobreviva reconfigurando-o.

Os neoliberais, a começar por Fukuyama, anunciaram o Fim da História, confundindo a derrota de um projeto desvirtuado de construção de sociedade com a derrota do ideal.

É, no entanto, verdade que os humanos foram sistematizando alguns princípios que, não obstante os milhares de anos decorridos, continuam válidos.

Hipócrates, considerado o pai da Medicina (460-370 a.C.) foi, a convite do povo e do Senado da cidade de Abdera, chamado a dar consulta e cura a Demócrito, filósofo pré-socrático reconhecido entre os gregos.

Na sua resposta na carta de resposta, Hipócrates escreve: "Felizes os povos que sabem que os homens honrados são as melhores armas defensivas e que confiam mais nos conselhos sábios dos homens sábios que nas torres e nas muralhas…” (Do riso e da loucura, Padrões Culturais Editora).

Vivemos tempos que ofendem a honradez e os melhores valores da democracia, como se a liberdade servisse para os gananciosos abocanharem o que lhes não pertence até ficarem prisioneiros de tanta ganância.

São constantes as notícias dos escândalos de corrupção ligados sobretudo aos partidos do poder e sujeitos afins. Esta constância ao longo dos últimos anos revela que o recrutamento de quadros dirigentes do PS e PSD (e não só) traz na origem o pecado mortal da política atual, que deixou de ser algo que tenha na opção uma vocação para servir o bem público para se tornar na escadaria do enriquecimento, salvas honrosas exceções.

Revela ainda que o mal é muito mais profundo na medida em que é tolerado em boa medida pela própria sociedade. A não o ser, seguramente já havia motivos mais do que suficientes para mudar de voto para os partidos menos atingidos pela corrupção ou para manifestações de vária ordem de protesto, sem querer fazer dos partidos que não governaram entidades incorruptíveis.

A falta de coragem sobrepõe-se à dignidade. Os cidadãos exprimem entre si o seu desacordo designadamente à mesa do café e olhando para o lado para ver como são sentidas as suas palavras.

De certa forma, a corrupção cresceu tanto que levou os cidadãos a pensarem que já não é possível viver sem ela, o que será a maior vitória da corrupção. Conseguiu anestesiar a sociedade. Aos anestesiados pode-se fazer o que se quiser.

Os corruptos são os principais responsáveis, mas quem abana os ombros e neles vota à espera de algo tem a sua percentagem de responsabilidade.

No romance de Gogol Almas mortas, Tchitchikov, a personagem principal, compra as almas mortas no esplendor da sua capacidade de enganar e corromper. Hoje estão anestesiadas, ao sabor dos sacerdotes do Santo Mercado.

Voltando ao velho Hipócrates, as mulheres e os homens honrados são sem dúvida as melhores defesas do regime democrático. Procure-se a coragem dentro de cada um e mude-se o caminho. Viver anestesiado não é viver, é renunciar à possibilidade de se ser dono do futuro coletivo e individual. Um anestesiado social é um ser a quem lhe arrancaram a alma, vagueia sem chama de vida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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